Há meio século, chegava ao mercado a primeira pílula anticoncepcional. Símbolo da libertação sexual das mulheres, o contraceptivo dava a elas, pela primeira vez na história, o controle da própria fertilidade e a opção de fazer sexo quando quisessem, sem o temor de engravidar. Mais: abria portas para que se dedicassem à profissão e enxergassem um futuro para além das lidas domésticas e da maternidade.
Mas Margaret Sanger, enfermeira, sexóloga feminista e um dos nomes por trás da criação da primeira cartela de anticoncepcionais, hoje se surpreenderia com um movimento que ganha força entre a nova geração: muitas mulheres têm buscado alternativas para deixar de tomar aquele pequeno comprimido diário por motivos que vão desde conhecer melhor o próprio corpo ao receio de perder a libido.
#PílulaEmXeque
A pílula segue como método preferido de 61% das brasileiras que usam contraceptivos, de acordo com pesquisa do IBGE, mas as ginecologistas entrevistadas nesta reportagem relatam ter observado uma mudança de comportamento das pacientes nos últimos cinco anos. Cada vez mais mulheres chegam ao consultório não em busca de qual a melhor marca para o seu perfil, e, sim, de outros métodos contraceptivos disponíveis, de preferência sem hormônios.
— São mulheres jovens, que têm um nível de escolaridade maior e que entendem que a pílula não é o único método existente. Ou elas chegam querendo mudar para uma com menos risco ou não querem usar nenhum método hormonal – afirma a ginecologista Carla Martins, membro da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) e diretora do Centro de Reprodução Humana FertilCare, de Brasília. – Que hoje a pílula é mais segura do que há três, quatro décadas, não há dúvida, mas esses efeitos colaterais sempre existiram. Muitas vezes a paciente não tinha conhecimento ou o médico não explicava de forma correta.
O fenômeno não passou batido pela indústria farmacêutica, que busca desenvolver produtos com menos efeitos e menor dosagem de hormônio. Mas outros fatores pesam na balança.
– A recusa de algumas mulheres em tomar a pílula não pode ser vista de forma isolada. Tem a ver com uma preocupação cada vez maior com o que ingerem e com o meio ambiente, seja em relação a alimentos ou remédios – afirma Jane Felipe, professora titular da Faculdade de Educação da UFRGS (Faced) e vice-coordenadora do Grupo de Estudos de Educação e Relações de Gênero (Geerge) da mesma universidade. – É um movimento que vai contra não somente a pílula, mas também a reposição hormonal durante a menopausa, por medo de complicações futuras. Vemos também mulheres recusando tratamentos químicos nos cabelos, aderindo à transição capilar, ou preferindo coletores menstruais no lugar de absorventes. Estamos deparando com um movimento pró-natureza, que implica uma preocupação com nós mesmos.
Foi exatamente para buscar uma alternativa mais natural que a advogada e empresária Luciana Martinez, 43 anos, abandonou a pílula de vez há três meses. Usuária do método anticoncepcional há 20 anos, ela já havia feito algumas pausas, mas nunca conseguiu deixar os comprimidos de vez por conta de problemas como alterações de humor, irregularidade no ciclo, queda de cabelo e fortes dores de cabeça. Nem o fato de o marido ter feito vasectomia lhe deu segurança para deixar a cartela de todo mês. Até que, depois de ler o relato de outras mulheres em grupos no Facebook e conversar com sua ginecologista, decidiu que era hora de parar:
– Há 20 anos, quando comecei a tomar, não se falava dos efeitos colaterais. Me venderam a ideia de que o anticoncepcional ia regular minha menstruação, melhorar meu cabelo, diminuir as cólicas. Vendem para a gente que só vai fazer bem. Ninguém me avisou dos riscos, só descobri com o tempo. E queria ter ouvido isso há duas décadas.
A partir de depoimentos de outras ex-adeptas da pílula que a bibliotecária e estudante de Psicologia Andreli Dalbosco, 25 anos, decidiu parar de tomar o anticoncepcional hormonal há pouco menos de um mês:
– Eu me dei conta de que nunca tinha pensado sobre os efeitos da pílula. A gente toma sem se questionar. Depois que comecei a estudar sobre, ainda demorei alguns meses até parar.
Assim como muitas mulheres, Andreli começou a tomar o anticoncepcional na adolescência para fins que vão além da contracepção, como regular o ciclo menstrual e amenizar as cólicas.
– Ninguém quer sentir dor, mas acabamos tomando sem ver (os riscos) – afirma. – Agora, eu me sinto mais disposta.
Andreli também comemora outro aspecto da vida sem hormônios: está ansiosa para saber como será seu ciclo sem os efeitos do anticoncepcional, o que considera uma tomada de consciência do próprio corpo.
Para Jane Felipe, esse movimento reflete mudanças de comportamento da chamada primavera feminista, que ganhou as ruas e as timelines do Brasil e do mundo desde 2015:
– Tem a ver com os questionamentos e as imposições que tentam regrar nossas vidas, como se depilar ou não ou ter um determinado tipo de corpo para ser aceita e se sentir amada e desejada. Muitas mulheres têm entrado neste movimento para quebrar as barreiras e os scripts de gênero e sexuais que nos são socialmente impostos como “naturais” e “desejáveis”.
No caso da estudante de Engenharia Bruna Lehmkuhl de Arruda, 23 anos, a pausa no uso da pílula foi forçada durante um intercâmbio na Irlanda há dois anos. Certo dia, a garota começou a sentir fortes dores na nuca. Foi para o quarto descansar e, depois daí, tomou consciência do que aconteceu somente quando acordou no hospital. Os amigos contaram que ela permaneceu trancada durante três dias, recusando-se a abrir a porta. Quando conseguiram entrar, levaram Bruna para o pronto-socorro. Depois da ressonância, veio o diagnóstico: trombose venosa cerebral.
– Os médicos fizeram uma entrevista comigo e a primeira coisa que perguntaram foi se eu usava anticoncepcional – recorda a universitária, que tomava a pílula havia sete anos na época.
Bruna ficou três meses internada, um deles na UTI. Quando retornou ao Brasil, consultou sua ginecologista para pedir outro método anticoncepcional, já que ela havia sido proibida pelos médicos da Irlanda de tomar pílula.
– A minha médica não acreditou que a trombose teria sido por conta dos comprimidos. Foi bem complicado – relembra. – Hoje, sou totalmente contra a pílula. A gente vê os benefícios, mas não pensa no que pode acontecer.
O medo da trombose é um dos grandes incentivadores para mulheres buscarem alternativas à pílula. No consultório da ginecologista Carla Martins, em Brasília, a cena vem se tornando mais frequente: assustadas com notícias que pipocam nas redes sociais, muitas pacientes, sobretudo as mais jovens, pedem outro método contraceptivo. Mas o risco da doença é bem menor do que se imagina ao ler um relato chocante no Facebook.
– Esse risco sempre existiu, e existe com qualquer tipo de pílula com estrogênios, independentemente da marca. Mas o tromboembolismo também pode ocorrer sem o uso de pílula – diz a ginecologista.
Entre não usuárias de pílula, destaca Carla, há o risco de uma a duas mulheres em cada 10 mil apresentarem trombose, somente por serem mulheres e produzirem hormônios como o estrogênio. No caso das mulheres que tomam o comprimido diariamente, os dados apontam 3 a 6 casos em cada 10 mil usuárias.
– É um evento muito pouco frequente, mas é grave quando acontece. Ainda assim, não é uma incidência tão grande. Mas a pílula realmente contribui – afirma Carla.
A médica ainda lembra que a condição feminina que mais causa trombose é a gravidez, quando de 20 a 30 mulheres a cada 10 mil podem ter a doença:
– Sempre tivemos tromboembolismo com pílula, com pós-parto. Com (o que se lê nas) redes sociais, parece que os casos aumentaram, mas não: continuam como sempre foram.
Para a ginecologista Clarissa Amaral, de Porto Alegre, esses questionamentos representam um maior interesse das mulheres pela própria saúde e por sua sexualidade. Cabe então, aos médicos, orientarem sobre as alternativas disponíveis. Quando recebe uma paciente que está insegura com o uso da pílula, ela costuma recomendar o DIU de cobre:
– É seguro, eficaz e com poucas complicações. Infelizmente, no Brasil, ainda é muito mistificado. Mas, em países europeus, por exemplo, é muito bem aceito.
Jaqueline Neves Lubianca, ginecologista, membro da Febrasgo e professora de Ginecologia e Obstetrícia da Medicina da UFRGS, concorda:
– O único método reversível de contracepção sem o uso de hormônios é o DIU de cobre. A paciente percebe seu ciclo normalmente, recupera a libido no período ovulatório. Dura 10 anos e tem baixa chance de se descolar ou mover.
Métodos de longa duração como o DIU (saiba mais no quadro ao lado) estão também entre as principais recomendações da Febrasgo e da Organização Mundial de Saúde. Mas tanto Jaqueline Lubianca quanto Carla Martins destacam que o método anticoncepcional deve ser uma escolha da cada mulher.
– Cabe ao ginecologista dizer para a paciente os riscos, benefícios, efeitos colaterais, benefícios não contraceptivos, e ver se é o método mais adequado ou não. Mas quem escolhe é ela. A OMS diz que, assim que a usuária solicitar, você prescreva o contraceptivo fazendo uma avaliação da história clínica e do exame físico – diz Carla.
Clarissa Amaral reforça a importância de, independentemente da sua escolha, ter consciência da necessidade de um contraceptivo eficaz quando você não tem o desejo de engravidar:
– O que mais me preocupa é o quanto esses mitos assumem um papel importante e as mulheres deixam de se cuidar em relação à contracepção.
Carla Martins acrescenta:
– A pílula anticoncepcional hoje, com a formulação e as doses que tem, traz mais benefícios do que riscos. Se a paciente não tem nenhuma condição que contraindique a pílula, ela melhora a cólica, diminui o fluxo, em algumas melhora acne, diminui pelos, a formação de cistos de ovários. Se eu tenho uma paciente sadia, o risco dela é muito pequeno.