É tão dramático que dói lembrar, mas abro esta crônica com uma situação narrada por um homem que participou do resgate das vítimas da boate Kiss, 10 anos atrás. Ele conta que viu, no celular de uma das garotas mortas, 120 chamadas perdidas feitas pela mãe dela.
Qualquer um de nós pode se colocar no lugar dessa mãe desesperada. É por isso que temos obrigação de agir. E agir não significa rezar ou cruzar os dedos. Significa, antes de tudo, mudar nossa cabeça. Não dá mais para pensar: essas coisas acontecem, são fatalidades.
Quando vemos as imagens de crianças yanomami em estado avançado de desnutrição, com os ossos quase rasgando a pele, o coração aperta, mas muitos argumentam que isso não é de hoje, que sempre foi assim, que estão politizando a questão. Quando o drama não é considerado novidade, lavar as mãos parece aceitável. Ninguém foi responsabilizado antes, por que responsabilizar agora? E segue-se em frente, como se morrer cedo fosse um costume indígena.
O caso Daniel Alves: outra não-novidade. Alguns homens, quando fazem sucesso e ganham bastante dinheiro, acreditam que a mulherada não quer outra coisa a não ser “dar” para eles. Enquanto este pensamento machista não mudar, o estupro parecerá um delito menor (ora, o cara teve apenas que forçar a barra um pouquinho com a moça teimosa, que se fez de difícil).
Fraude contábil seria alguma novidade? Quá, quá, quá. Entre risadas debochadas, se passa pano para empresários envolvidos em rombos milionários e que deixam inúmeros credores na mão. Afinal, quando se trata de dinheirama, o telhado de vidro é comum, melhor trocar de assunto: e o paredão do BBB, hein?
Novidade foi milhares de pessoas invadirem os prédios dos Três Poderes reivindicando a volta da ditadura. Aí são presos e parece uma injustiça, afinal, era só uma “manifestação”. Se eu entrar no prédio da prefeitura de qualquer cidade e quebrar vidraças, estilhaçar lustres, rasgar poltronas e destruir obras de arte, não considerarão que é meu direito de me manifestar, sairei numa camisa-de-força, estando só ou na companhia de outros surtados.
Moldados pelo “país do jeitinho”, punir com rigor nos parece sempre um exagero, até porque ninguém é infalível, vá que um dia também sejamos julgados pela opinião pública. Então, optamos pela condescendência, para o caso de um dia precisarmos da condescendência dos outros. Fazemos no máximo uma postagem “indignada” nas redes sociais, e não se fala mais nisso.
Crime não é só disparar arma de fogo ou cortar gargantas. Negligência, racismo, homofobia, estelionatos e assédios podem não deixar marcas de sangue, mas também fazem vítimas. Se nossa cabeça não muda e o “sempre foi assim” nos acomoda, um dia poderá sermos nós os agoniados ao telefone, sem que atendam nossas chamadas.