Na noite de 26 de janeiro de 2013, Ligiane Righi da Silva se despediu da filha Andrielle, que saiu de casa com as amigas para comemorar os 22 anos numa festa na boate Kiss, em Santa Maria. Horas depois, já em 27 de janeiro, Fátima Carvalho recebeu em São Paulo a notícia de que o filho estava entre as vítimas de um incêndio que se tornaria uma das maiores tragédias do país. Rafael Carvalho, 32, havia viajado ao Rio Grande do Sul para encontrar amigos. As duas mães, que há uma década dividem a mesma dor, compartilham suas experiências nesta sexta-feira (27) na Praça Saldanha Marinho.
Ao lado delas, outra mulher, que também perdeu um filho em caso semelhante. A argentina Nilda Gómez é mãe de Mariano Benítez, que morreu em 2004, aos 20 anos, em Buenos Aires. O painel chamado de "Mães y Madres: Kiss e Cromañón" abre a série de debates e reflexões desta sexta-feira no município da Região Central.
Nilda, que está em Santa Maria representando a ONG Famílias por La Vida e que acompanha e apoia os pais da Kiss desde o início, foi quem abriu o painel. A advogada, que perdeu o filho num incêndio que matou 194 pessoas na boate Cromañón, segue lutando pelo fim da impunidade.
— Não foi uma tragédia. Isso foi um massacre. Existia um lugar que era uma armadilha mortal que todos conheciam, e que com fogos de artifício e com materiais que não estavam regularizados se produziu o que não foi um incêndio. Essa armadilha mortal se converteu em uma câmara de gás — narrou.
Nilda disse que, após as tragédias, tanto no caso da boate Cromañón como da Kiss, as famílias passaram a trilhar um caminho de vítimas. Em sua fala, pontuou que não somente os que morreram ou que estavam no local e sobreviveram são vítimas, mas sim todas as pessoas que foram afetadas.
— Vítimas são as avós que veem chorar a mãe que não tem o filho; vítima é a mãe que não para de chorar; vítima é o outro filho que perdeu o irmão, seu par e também perdeu o pai e a mãe que tinha. Todos nos transformamos em outras pessoas. Passamos a ser as guerreiras, as lutadores, que enfrentam o poder. Nada disso nos define. Somos mães que tiveram os filhos assassinados — disse.
Vítimas são as avós que veem chorar a mãe que não tem o filho; vítima é a mãe que não para de chorar; vítima é o outro filho que perdeu o irmão, seu par e também perdeu o pai e a mãe que tinha. Todos nos transformamos em outras pessoas.
NILDA GÓMEZ
Mãe de Mariano Benítez, que morreu em 2004, aos 20 anos, no incêndio de uma boate em Buenos Aires
A advogada seguiu a fala explicando que as famílias são vítimas de série de violências e que, além da busca por justiça, que se transformou num calvário, a falta de empatia também fere os familiares:
— Todos nós também somos vítimas. Vítimas de um Estado que não teve cuidados, vítimas de particulares, que privilegiaram o dinheiro à vida, vítimas dos que não olharam para o outro lado, de pessoas que nos veem passar com a nossa dor e viram para o outro lado e não perguntam de que maneira podem ajudar. Quando há muitas formas de ajudar.
Num dos momentos emocionantes, Nilda falou sobre a hora da perda.
— Não sofreram somente queimaduras, com o calor insuportável, ou por serem pisoteados, também sofreram porque não iam poder nos ver de novo — disse, comovida.
Nilda exibiu um vídeo com as fotos das vítimas do incêndio na Argentina. No fim de sua fala, enfatizou a necessidade de seguir lutando e puxou um grito de "justiça por Kiss".
"Somos todos iguais. A dor e a perda são as mesmas"
Logo depois, quem iniciou a fala foi Fátima, que perdeu o filho Rafael, que havia viajado a Santa Maria para encontrar um grupo de amigos que conheceu durante um intercâmbio. O rapaz, que morava em Santo André com os pais, foi à boate naquela madrugada e se tornou uma das vítimas do incêndio. Desde então, os pais vão e vem de São Paulo, participando das ações que clamam por justiça.
— São pessoas especiais que a gente conheceu nesse momento de dor e de perda, que a gente até preferia não ter encontrado — emocionou-se Fátima no início da fala.
Logo depois, relembrou que Nilda esteve com os pais das vítimas da Kiss desde o começo, buscando dar apoio por já ter vivido algo semelhante e que, assim, tornou-se inspiração. Fátima falou em seguida sobre a dor dividida pelas mães.
— Falando como mãe, para todas as mães, somos todas iguais. Somos todos iguais. A dor e a perda são as mesmas. Só terminaríamos essa luta e essa dor se tivéssemos os nossos filhos de volta, e isso não vamos ter. É até o final de nossas vidas. Não é só por Santa Maria. O Rafael veio de São Paulo e acabou perdendo a vida aqui. Conheci todos vocês, os pais, as mães, todas pessoas especiais, a partir desse horror. Eu venho para Santa Maria, tenho misto de dor, de saudades e de amor por todos vocês — disse Fátima.
Só terminaríamos essa luta e essa dor se tivéssemos os nossos filhos de volta, e isso não vamos ter. É até o final de nossas vidas. Não é só por Santa Maria.
FÁTIMA CARVALHO
Mãe de Rafael Carvalho, que morreu na Kiss, aos 32 anos
Ela falou ainda sobre as séries, uma pela Globoplay e outra pela Netflix, lançadas nesta semana tratando da tragédia. Considerou que são iniciativas importantes para mostrar ao mundo o que aconteceu em Santa Maria e para dar força à luta.
— O que nós esperamos é que nunca mais se repita algo parecido com o que houve na Kiss. E que nossos filhos não tenham ido em vão. Os que ficaram, os sobreviventes, não tenha sido em vão toda essa dor, esse sofrimento. Que a justiça realmente se faça. A justiça é didática e exemplar. Quando a justiça se faz, ela mostra o que estava errado, o que não poderia ser feito e o que deveria ter sido feito. É justiça mesmo, não é vingança, para que nunca mais se repita — disse.
Logo depois, Ligiane, que perdeu a filha Andrielle, também falou sobre as ações desenvolvidas ao longo desses anos, como a criação da tenda de vigília. O espaço, com as fotos das vítimas, está instalado na Praça Saldanha Marinho. Ali, foram desenvolvidas iniciativas como a produção e distribuição de kits com roupinhas de bebê em crochê e tricô para doação. Antes da pandemia, as mães chegavam a produzir e distribuir até cem kits por ano. Em 2022, foram 35 doações.
— Muito amor envolvido. Vocês não têm noção do que é uma mãe que não tem o que vestir no seu filho. Muitas mães não sabiam tricotar e nem fazer crochê, e aprenderam. Então, aí é o amor. O que o amor faz — disse.
A mãe falou ainda sobre a importância da tenda para mães que também perderam seus filhos de outras formas e não no incêndio da Kiss. Mas que ali na tenda se sentiam à vontade para compartilhar suas histórias.
— Elas dizem que ali a gente entende a dor delas, que fala a mesma língua. Estamos incomodando e vamos continuar. Desistir não é uma opção. A vida dos nossos filhos não foi em vão e a morte muito menos será. Vamos resistir até o final — disse.
Outros painéis
Por volta das 16h, foi dado início ao segundo painel do dia, chamado "O Caso Kiss: até quando a justiça vai servir a impunidade?". Tamara Biolo Soares, que é responsável por conduzir o processo na Comissão Interamericana de Direito Humanos, em que alega a violação do direito à vida, integridade e justiça por parte do Estado brasileiro contra as vítimas, sobreviventes e familiares, é a primeira a fala no painel. A ação que ainda está tramitando pede, entre outras medidas, que o Estado indenize familiares e sobreviventes, que adote reformas legislativas e que investigue os responsáveis.
— É mais fácil uma pessoa ser condenada quando ela mata uma pessoa do que quando ela contribui para a morte de 242 pessoas — afirmou, criticando, na sequência, a anulação do júri.
Neste painel, também é ouvido um dos pais das vítimas da Kiss. Paulo Carvalho faz parte do grupo de familiares que busca por justiça desde 2013 e, atualmente, é diretor jurídico da AVTSM. Ele é pai de Rafael, o rapaz que morava em São Paulo na época, viajou a Santa Maria e acabou vítima da tragédia.
A programação continua com painel sobre prevenção a incêndios às 17h30min e, mais tarde, às 19h, sobre o coletivo "Kiss: que não se repita", formado no fim de 2013, com intuito de ser espaço de desabafo sobre o luto. Tornou-se espaço de voz de sobreviventes, familiares e amigos de vítimas. Atualmente, procura manter viva a memória da tragédia.
Ainda à noite, os jornalistas Daniela Arbex e Marcelo Canellas falarão sobre os motivos de contar essa história 10 anos depois. Daniela é autora do livro Todo Dia a Mesma Noite: a História não Contada da Boate Kiss e participou como consultora criativa da série Todo Dia a Mesma Noite, que estreou na Netflix nesta semana. Canellas é diretor da série documental Boate Kiss — a Tragédia de Santa Maria, da Globoplay, produzida em parceria com o coletivo audiovisual TV Ovo, de Santa Maria. O encerramento ocorre às 22h, com apresentação musical.