Nos primeiros minutos desta sexta-feira, 27 de janeiro de 2023, pais, amigos e familiares de vítimas e sobreviventes da tragédia de Santa Maria ingressaram na Rua dos Andradas. Caminhavam em silêncio, muitos deles vestindo roupas brancas. O mesmo trajeto foi percorrido há uma década por jovens que esperavam se divertir na Boate Kiss. Hoje, o local é cenário de lembranças de uma madrugada de terror, onde 242 pessoas morreram, e de batalha por Justiça.
A caminhada que seguiu até a frente da boate partiu da Praça Saldanha Marinho. Ali, são realizadas nesta semana a maior parte das atividades alusivas aos 10 anos da tragédia. Os familiares desceram a Rua Rio Branco, em silêncio, muitos deles de mãos dadas ou abraçados.
Ao chegar em frente ao prédio da Kiss, o presidente da Associação de Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM) Gabriel Borges ajudou a fixar em frente à unica porta de entrada e saída da boate uma faixa branca. Nela, é possível ler a frase: "Resgatar a memória é construir o futuro".
Logo depois, o psicólogo, que é um dos sobreviventes da tragédia e demorou anos para conseguir falar sobre o episódio, agradeceu a presença das pessoas e reforçou a importância das mobilizações.
— Fazer um ato singelo de recepcioná-los nesse espaço e neste momento de vigília, é muito importante ver tanta gente caminhando nesse momento, estando junto, caminhando junto e registrando a história junto. E tendo a coragem de enfrentar o que a gente tem enfrentado de lembranças, de memórias. Sabemos que juntos a gente consegue muito mais — agradeceu, e foi seguido por uma salva de palmas.
Na sequência, foi dado início a uma apresentação de uma coreografia. O grupo de dançarinos buscou representar a alegria dos jovens vivida naquela noite, seguido pelos momentos de agonia da tragédia, a tristeza do luto e, por fim, abraçaram os pais e familiares.
Foram distribuídas rosas brancas às pessoas que assistiam sentadas no meio da rua ou nas calçadas. Neste momento, alguns se agarraram às flores, num abraço afetuoso, como se nelas pudessem alcançar os entes perdidos. Por toda a rua, via-se muitos casais abraçados. Neste momento, o local ficou silencioso.
Amparando-se na fachada da boate, a professora aposentada Elizete Nunes Andreatta, 59 anos, era acolhida pelo marido Darci Andreatta, 57. Há uma década, o casal perdeu o filho Ariel, que tinha 18 anos. O jovem, que adorava cozinhar, havia deixado o município de Joia, no noroeste do Estado, onde vivia com os pais para cursar Tecnologia em Alimentos na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
— Ele era um menino iluminado. Ele saiu do interior, estudou em Ijuí e depois veio para cá. Ele estava muito feliz. Eu aprendi muito com ele sobre solidariedade. Ele queria conhecer o mundo, gostava de dançar. Não tem como não se emocionar. Faz dez anos e para nós parece que foi ontem — descreve a mãe.
Os pais participaram dos atos ao longo dessa década, inclusive do julgamento em dezembro de 2021, em Porto Alegre. Após a condenação dos quatro réus, o júri foi anulado em agosto do ano passado.
— A dor ainda é maior porque depois desse tempo a impunidade continua. Além da perda dos nossos filhos, isso é muito dolorido para a gente. Sei que o Ariel e os demais não vão voltar, mas tentamos agir em memória dele - desabafa a mãe.
Mesmo distante cerca de 300 quilômetros de Santa Maria, o casal busca se manter ativo na luta. O agricultor, inclusive, faz parte da AVTSM. A mãe acredita que a mobilização é essencial para cobrar Justiça e para que o caso não seja esquecido pela população.
— Nosso filho entrou vivo ali dentro e saiu morto. Ele estava se divertindo como qualquer pessoa. Acreditou que aqui era um local seguro. É muito triste como sociedade — diz Elizete.
Apoio
Estudante de psicologia na época do incêndio, Jordana Ribeiro, 37 anos, só não foi à boate naquela noite porque a família decidiu ficar mais tempo no litoral catarinense. Ela havia sido convidada para o aniversário de um amigo e colega. No entanto, desistiu de ir na comemoração.
— É muito triste. Procuro vir todos os anos para dar força para conhecidos, pais. Infelizmente, parece que é um peso para a cidade — diz.
A mãe dela Sônia Ribeiro, 59 anos, acompanha a filha nos atos. Muitas vezes se pegou pensando em como reagiria caso a filha estivesse entre as vítimas.
— É uma questão de empatia. Eu fico pensando: e se fosse comigo? Não sei se aguentaria — afirma.
As duas estavam sentadas na calçada, próximo do acesso à boate, enquanto na fachada do prédio eram coladas fotos e indagações sobre o incêndio. As imagens, de momentos de abraços e afeto, foram reunidas às marcas de manifestações anteriores.
Na fachada, é possível encontrar estrelas com mensagens, grafites e frases cobrando Justiça. São marcas dos anos de atuação dos pais, buscando por um desfecho justo.
Às 2h30min, em horário próximo daquele em que ocorreu o incêndio, uma salva de palmas encerrou a vigília em um minuto de barulho.
Soltura de balões e painéis de reflexão
Nesta sexta-feira, continuam as ações para marcar os 10 anos da tragédia. Às 10h, haverá um culto ecumênico na Praça Saldanha Marinho. No começo da tarde, às 13h45min, será realizada a soltura de balões no mesmo local.
Logo depois, às 14h, começará o painel "Mães y Madres: Kiss e Cromañón". Nesse momento, serão ouvidas três mães, duas de jovens que perderam a vida na boate Kiss, e uma da argentina. Nilda Gómez é mãe de Mariano Benítez, 20 anos, que morreu durante incêndio de uma boate em 2004, em Buenos Aires. Além dela, falarão Fátima de Oliveira Carvalho, mãe de Rafael Carvalho, e Ligiane Righi da Silva, mãe de Andrielle Righi da Silva - os dois morreram vítimas da Kiss.
Às 15h30min, será realizado painel chamado "O Caso Kiss: até quando a justiça vai servir a impunidade?". Neste momento, um pai também será ouvido. Paulo Carvalho faz parte do grupo de familiares que busca por Justiça desde 2013 e, atualmente, é diretor jurídico da AVTSM. O filho dele, Rafael Carvalho, que morava em São Paulo na época, viajou a Santa Maria e acabou vítima da tragédia.
A programação continua com painel sobre prevenção a incêndios às 17h30min e, mais tarde, às 19h, sobre o coletivo "Kiss: que não se repita", formado no fim de 2013, com intuito de ser espaço de desabafo sobre o luto. Tornou-se espaço de voz de sobreviventes, familiares e amigos de vítimas. Atualmente, procura manter viva a memória da tragédia.
Ainda à noite, os jornalistas Daniela Arbex e Marcelo Canellas falarão sobre os motivos de contar essa história 10 anos depois. Daniela é autora do livro "Todo dia a mesma noite: a história não contada da boate Kiss" e participou como consultora criativa da série "Todo dia a mesma noite", que estreou na Netflix nesta semana. Canellas é diretor da série documental "Boate Kiss - A tragédia de Santa Maria", da Globoplay, produzida em parceria com o coletivo audiovisual TV Ovo, de Santa Maria. O encerramento ocorre às 22h, com apresentação musical.