Cada vez que você acompanha sua mãe na consulta ao médico, que explica de novo para seu pai como enviar fotos pelo WhatsApp, que convida seu avô para uma partida de xadrez, é Natal. Basta uma gentileza, uma atenção, e você promove o ordinário a sagrado. E você achava que um único Natal era suficiente, que jamais sobreviveria a dois. Pois você vem sobrevivendo a vários.
Já não carrego dinheiro vivo comigo, mas às vezes saco algumas notas, a fim de ajudar quem está passando necessidade na rua. Outro dia dei 20 reais para um senhor parecido com o Keith Richards, e a semelhança terminava aí. Ele me disse: obrigada, hoje vou conseguir almoçar. Era uma manhã de quarta ou quinta-feira, talvez sexta, tanto faz. Anoiteceu e o sino gemeu.
Todo santo dia, você faz alguma coisa legal. Alguma coisa Natal. Empresta o livro que mais ama para alguém que talvez não vá devolvê-lo. Vai buscar um amigo no aeroporto, mesmo ele dizendo que não precisa se incomodar, que ele pode pegar um Uber. Fica com a chave do apartamento da vizinha e entra lá para alimentar o gato, enquanto ela não volta de férias. Dá uma carona no seu guarda-chuva para alguém que saiu sem conferir a previsão do tempo. Aceita o folheto que o menino entrega no sinal, para que ele sinta que a tarefa dele tem valor.
O Natal não é um dia santo para todos. Nem todos creem, ou rezam, ou se comovem, para muitos é só peru, sarrabulho e pacotes embaixo de uma árvore artificial, forçando sorrisos igualmente artificiais. Mas todo santo dia a gente pode tentar acertar no presente.
Até mesmo sozinho em casa, isolado. Poderá ser o dia especial em que você decidirá perdoar a indiferença de alguém que nunca se importou com seu sentimento. Poderá ser o dia que você desistirá de culpar um parente por uma limitação que, afinal, é só sua. O dia que você abrirá um vinho e se despedirá serenamente de um amor que se foi, sem mais tentar retê-lo. O dia que você apagará a postagem ofensiva que fez contra uma pessoa que apenas discordou de você. Longe de mim causar pânico, mas nós mesmos podemos provocar uns 10 Natais por dia, todo santo dia. E aguentamos sem reclamar, nem nos damos conta, afinal, não são feriados, e sim dias úteis – dias em que nós somos úteis. Dias banais em que, com uma merreca de gesto, a gente atenua a sensação de inferno e deserto que dilacera tanta gente.
Todo santo dia é Natal, qualquer dia de janeiro, abril, agosto pode trazer o espírito deste Natal badalado de 25 de dezembro, com a vantagem de não serem datas dispendiosas, obrigatórias ou repetitivas — aleluia. De jeans e camiseta, com o cabelo ainda molhado, apenas trocamos alguns presentinhos com o universo, sem estresse.