Tenho um irmão. Adoraria ter quatro, cinco, mas só tive o Fernando. Para compensar, ele vale por mil, é o cara mais boa gente que conheço. Nosso retrospecto é cristalino: sem brigas, competições, distâncias, nem mesmo as eventuais, comuns em qualquer família.
Nossa infância foi compartilhada com primos maternos em primeiro grau. Entre as meninas, eu era a mais moça, e me encantava com as de mais idade e suas histórias de namorados, um universo que eu ainda não tinha acesso. Estudei na mesma aula com uma delas e nos tornamos melhores amigas por anos.
Entre os homens, nenhum era menos que lindo, e sabemos o fascínio que exerce um primo lindo. Éramos 13 no total, todos portando o mesmo sobrenome Mattos, uns por parte de mãe, outros por parte de pai.
Então a infância terminou, minha melhor amiga trocou de colégio, os mais velhos se casaram e aos poucos cada um seguiu sua vida, mas o afeto permaneceu. Três já faleceram, e são lacunas que jamais serão preenchidas, vazios que ainda nos custam aceitar. Alguns se veem com frequência, eu os vejo menos, mas nunca, em nenhum momento, o orgulho de pertencer a essa família arrefeceu.
Partimos do mesmo lugar. Essa é a potência máxima do laço sanguíneo: partimos do mesmo lugar. Arrancamos juntos rumo à vida adulta. Até que surgiu Bolsonaro.
Sei de casos em que irmãos não conseguem mais almoçar na mesma mesa, primos nem se cumprimentam. Laços foram desfeitos enquanto a extrema direita esteve no poder, e agora que a centro-esquerda vem aí, tudo indica que a briga continuará. Poderia tentar defender um lado, mas estou em missão de paz: quero defender o parentesco.
Quem me conhece, sabe o quanto sou crítica às obrigatoriedades, ao carinho encomendado para datas festivas, à hipocrisia instituída a fim de manter as aparências. Não há quem não tenha algum desencaixe com pai, mãe, irmãos. Às vezes acontece de não gostarmos de alguém a quem deveríamos amar.
Mas volto à frase mais importante deste texto: partimos do mesmo lugar. Como seres solitários que essencialmente somos, esse pertencimento tem valor. Houve um dia em que dividimos refeições, compartilhamos quartos, brincamos juntos. Choramos pelos mesmos avós, cultivamos as mesmas memórias. Viemos do mesmo núcleo fundador da vida. Bifurcações são naturais.
Uns têm um conhecimento que outros não têm, uns se apegam a preceitos que a outros não importam tanto. Mas, mesmo considerando as mágoas que as diferenças provocam, e excluindo casos extremos, sou a favor da manutenção do vínculo. Ninguém precisa tirar férias sob o mesmo teto. Basta um WhatsApp no aniversário, um abraço durante um encontro inesperado, um sinal qualquer de que a descendência está acima do rés do chão. Não viemos do nada.