A última vez que almoçamos juntas eu ainda me deslumbrava com seu sorriso de garota e seus olhos faiscantes, dois holofotes que não perdiam nada do que acontecia ao redor – e nem eram azuis, e ela nem era garota, tinha mais de 60. Sobrava inteligência. Assistia a todas as peças em cartaz e dominava os assuntos da mídia tradicional e da mídia independente, pois não era mulher de se conformar com uma única versão dos fatos. Não saía de casa sem suas echarpes exóticas, trazidas de andanças pelo mundo. Era uma pessoa comum e ao mesmo tempo um acontecimento, e sendo o mundo generoso comigo, aquele não foi nosso terceiro nem oitavo almoço, pra lá do vigésimo. Amizade rodada.
Acho que nunca havíamos demorado tanto para nos reencontrar. Além de morarmos em cidades diferentes, teve a pandemia e a própria vida, que nos sobrecarrega de tarefas a ponto de subverter a percepção do tempo: mal diferenciamos o que aconteceu há três meses ou há três anos. Ela e eu acabamos nos acostumando com a troca de WhatsApp e não vimos o tempo passar, até que voltamos a sentar à mesma mesa, ela agora com mais de 70 e algumas perdas na bagagem.
Me explicou sobre o problema no joelho que a estava impedindo de correr, atividade matinal sagrada, costumava fazer oito quilômetros assim que acordava. Paciência, aderiu ao pilates. Percebi seu rosto tomado por rugas novas, mas os olhos mantinham-se faiscantes. Sua boca murchou, reparei, mas, que diabos, a minha também, mesmo sendo mais moça. Seu cabelo havia perdido o brilho e o volume, percebi assim que ela retirou a echarpe que agora usava enrolada na cabeça, não mais no pescoço. Quimio? Ela assentiu, mas a ascendência nordestina não permitiu que ele caísse todo, foi a explicação pouco científica que me deu, acompanhada de uma piscadinha. E ainda nem tínhamos falado sobre a morte de sua mãe, que foi um abalo mais duro do que ela previa. “Mas são 13h20min de uma quinta-feira e você está bem aqui na minha frente, não vejo motivo melhor para um vinho branco gelado. Garçom!”
É um processo lento e contínuo. O rosto desaba um pouco e ganha vincos. O corpo resiste graças a atividades físicas regulares, mas também vai se entregando. Alguma doença aparece, é curada, então vem outra, e certas dores excêntricas. A memória falha bastante, às vezes menos, ler ajuda. Mas graças ao bom humor e a uma vida bem aproveitada, as contingências previsíveis deixam de ser dramáticas. Envelhecer é um teste de sabedoria. A grande tragédia do envelhecimento é restar só. Ela e eu fizemos um brinde, sorrimos o sorriso que o tempo nos deu e confirmamos que, sem preservar os afetos, de nada presta viver tanto. Marcamos novo almoço para breve.