Sempre que chega o fim do ano, um calafrio me percorre. "Passei por ele de novo", penso. Atravessei todos os 12 meses e cada um de seus dias, e um deles era ele, que, discreto, não se fez notar. Percorri o dia da minha futura morte em plena vigência da vida. É sobre a vida que pretendo falar, confie em mim.
Ele existe: o dia fatal. Porém, anônimo. Pode ser o 13 de abril, o 21 de junho, o 8 de novembro ou qualquer outro dia do calendário 2022 que se descortina. Olho para todos os próximos 365 dias e levo fé de que passarei por ele, mais uma vez, sã e salva, sem desconfiar o ano (felizmente, indeterminado) em que ele não me deixará seguir em frente, me reterá para sempre e formará, junto à data do meu nascimento, a dupla mais importante da minha biografia: o dia em que cheguei e o dia em que parti, inseparáveis na minha lápide. Que ele não tenha o mau gosto de cair no mesmo dia que nasci, quero o privilégio de ter duas datas masters para me chorarem.
Falta de timing dessa mulher, talvez o leitor esteja pensando. Em pleno entusiasmo da virada, este assunto? Entenda, é apenas uma homenagem à elegância da inocência. Todos os anos, passo 24 horas vivenciando um dia que terá grande destaque no meu futuro, porém acordo como se fosse uma data qualquer. Cumprimento o sol que avisto pela janela, tomo meu suco de laranja, enrolo uma fatia de queijo numa fatia de blanquet de peru e engulo esse enroladinho em pé mesmo, enquanto aguardo meu personal para uma hora de treino de força, confiante de que isso me garantirá alguma longevidade. A inocência é muito camarada, nunca estraga nosso prazer de fazer planos.
Antes que ele seja o último, será mais um dia comum. Escreverei um texto que não mudará o mundo, talvez assista a um filme com o namorado e me preocuparei com trivialidades, sem ter a mínima ideia de que estou passando por um outro tipo de aniversário, aquele que jamais celebrarei.
O que isso tem a ver com a vida? Tudo. A vida só é bem aproveitada graças a essa única ignorância a festejar. Na inauguração de mais um ano, sinto como se eu tivesse a eternidade toda para amar, para viajar, para lutar por mudanças necessárias, para fazer novos amigos e com eles beber muito vinho. Para plantar uma muda de cipreste no jardim, acreditar que o verei crescer e que ainda desfrutarei de sua sombra – pouca, cipreste não dá muita sombra, convenhamos.
Prezo a generosidade deste desconhecimento fundamental, o segredo mais bem guardado do universo, que nunca se revela a fim de que possamos percorrer sossegados a estrada adiante, do contrário, paralisaríamos. É isso, a crônica esquisita é apenas para agradecer o mistério, esse adorável condutor dos nossos sonhos.