Ganhei duas horas memoráveis de presente de Natal. Numa noite da semana passada, exausta pelas atividades do dia e pela pressa que caracteriza essa época de festividades, me sentei em frente à tevê e escolhi para assistir, no cardápio da Netflix, ao novo filme do italiano Paolo Sorrentino, A Mão de Deus. Não imaginava que estava abrindo o melhor pacote que poderia ser deixado embaixo da minha árvore.
É o que chamo de timing perfeito. No encerramento de mais um ano tenso e difícil, nos chega esse convite para pisar nas nuvens. Sorrentino, de A Grande Beleza, nos presenteia com outra epifania, um filme que se inicia excêntrico e imprevisível, até que, aos poucos, começa a tocar no divino.
É a história de Fabietto, jovem de 17 anos que está prestes a realizar um sonho: ver seu ídolo Maradona jogar no Napoli, o time da sua cidade. Mas a vida lhe reserva ainda outra surpresa, um forte empurrão para que se despeça da sua inocência.
Parece um roteiro como qualquer outro, mas quem está no comando não é qualquer diretor. Sorrentino dá uma aula sobre seu ofício. Posiciona a câmera de modo a extrair ângulos incomuns e confirma a máxima felliniana de que o cinema não precisa servir para nada, a não ser para nos distrair da realidade. E assim somos arrebatados pelo extremo fascínio de suas imagens e flutuamos em outra dimensão, pra longe da vulgaridade dos julgamentos.
Por duas horas, esquecemos do mundo politicamente correto, das disputas entre o certo e o errado, da obrigatoriedade de tudo ter que fazer sentido. O absurdo vem buscar seu lugar de fala. O racionalismo cede lugar ao sensorial. A fantasia conquista o pódio máximo da realização humana. Nápoles, aquela cidade caótica, suja e barulhenta que costumamos ver em enquadramentos realistas, torna-se uma joia neoclássica, uma metrópole cintilante. Até um engarrafamento no trânsito apresenta-se em majestosa organização.
Sorrentino eleva o status das caricaturas, abençoa as alegorias e impede nosso abatimento – é proibido ficar entediado. Não há uma única tomada que não seja gloriosa, mesmo as breves. É noite. Numa rodovia à beira-mar, um carro com urgência para chegar em um hospital vai ultrapassando os outros, num balé de faróis, sombras e movimento ritmado. E uma cena qualquer se torna “a” cena.
Que filme bem-vindo depois de uma pandemia que colocou a todos de joelhos diante da crueza dos fatos e da vida. É como se a mão de Deus nos tirasse do meio dessa bagunça e nos jogasse em outro plano. Uma experiência cinematográfica formidável. Se antes eu era admiradora, me tornei devota de Sorrentino, e devoção me parece uma palavra adequada ao final de mais um dezembro.