Prezados, esta carta chegará atrasada, com dois de vocês já habitando outro plano, mas como foi sacramentado que a banda é eterna, seguimos juntos.
Quero falar de Get Back, claro, o documentário que está obcecando quem é beatlemaníaco (ia escrever “foi” beatlemaníaco, mas alguém conseguiu deixar de ser?). Lennon quase passou por um cancelamento por ter dito que vocês eram mais famosos que Jesus Cristo (sorte que as redes sociais não existiam), mas o exagero da declaração procede, os Beatles se tornaram mesmo uma espécie de religião, e agora temos a oportunidade de entrar no céu através de uma plataforma de streaming.
Não sabia que o doc seria dividido em três partes e totalizaria sete horas de imagens: a indução ao tédio é um risco, são só vocês quatro num estúdio, dia após dia, criando canções e discutindo o próximo show ao vivo (que viria a ser o último). Eu mesma, lá pela metade da primeira parte, tive que parar porque bateu a fome – coisa mundana, jantar... Mas voltei pra frente da TV e resolvi não esperar pelo fim, já estou aqui remetendo minha adulação nessas mal traçadas.
Não é qualquer banda que cria um gênero musical. Existe o jazz, o blues, o rock, o samba, o hip hop, o forró, os Beatles, o gospel, o bolero. Vocês fundaram um estilo único, sofisticado, de extraordinária inventividade, nenhum disco igual ao outro. Quem não reconhece os primeiros acordes de Yesterday, The Long and Winding Road, Hey Jude, Don’t Let me Down? São duas centenas de clássicos em apenas 10 anos.
Vocês entraram no meu quarto de menina e ofertaram a trilha sonora da minha vida. Quem diria que, mais tarde, eu também entraria na intimidade de vocês, que me sentaria ao lado de George Harrison enquanto ele compunha um riff de guitarra ou que dividiria a banqueta do piano com John Lennon (licença, Yoko). Que perceberia tão nitidamente a calma de Ringo e a hiperatividade de Paul, e como cada um dos quatro lidava com o temperamento do outro, mantendo a elegância até mesmo – ou principalmente – durante as desavenças. Não, nunca foi only rock’n’roll.
Nove de janeiro de 1969: o parto de Let It Be. O privilégio de ver nascer uma obra-prima. A busca pelo tom melódico, pelas palavras certas. Neste dezembro de 2021, esparramada num sofá em Porto Alegre, me vi transportada para a fleumática Londres e virei voyeur de um big bang: o desenvolvimento inicial de canções que atingiram em cheio aquela menina de sete anos que eu fui e que tinha vocês como ídolos intocáveis – e que agora tem a honra de senti-los tão perturbadoramente perto.
Devemos ao diretor Peter Jackson esse presentaço de Natal e a vocês quatro a genialidade que nos legaram. Talvez eu não esteja falando por todos, mas falo por mim, herdeira perplexa de tamanha fortuna, mais beatlemaníaca do que nunca.