Continuamos dentro de nossas casas, vivendo entre quatro paredes - espaço que costuma ser amplo para alguns afortunados, porém exíguo para a maioria dos brasileiros e suas novas rotinas.
Os que moram só fazem abdominais sobre o tapete da sala, dançam com parceiros invisíveis, almoçam na companhia de um pet e jantam na companhia do William Bonner. Dormem mais tempo do que o habitual ou têm insônias intermináveis. Endireitam quadros que não estão tortos, encharcam as plantas cinco vezes ao dia e às 19h abrem um vinho a fim de tomar um moderado cálice.
Pegam o celular para dar uma olhada rápida no Facebook e só o largam quando o pescoço ganhou uma contração e a segunda garrafa de vinho já está vazia, por volta de duas da manhã. Sofrem por não estar ao lado de seus entes queridos, sem imaginar que as coisas não andam nem um pouco melhores com eles.
A convivência em família não tem sido tarefa para amadores. As brigas começam por uma banalidade qualquer, como o ponto de cozimento de um ovo, e desandam para traumas retroativos, como o de ter sido um bebê que nunca foi amamentado no peito. A mãe reclama do filho que ainda não arrumou a cama, e ele revida lembrando-a do dia em que ela esqueceu de buscá-lo no jardim de infância.
A obrigatoriedade de reclusão mexe com os nervos, mas o jeito é rir um pouco e lembrar que ao menos algo nos une: estamos sendo testemunhas históricas deste desconcertante mundo novo.
O marido comenta que a camisa não está bem passada, e a mulher surta: quando ele dá por si, está explicando pela centésima vez que não foi ele que beijou a morena com vestido de lurex na festa de Réveillon de 1983.
O adolescente sai do banheiro, depois de 15 minutos embaixo do chuveiro, e depara com um pai raivoso que segura a conta de luz, aos berros, e logo a coloca na boca, mastigando-a como se fosse um crepe. Não me parece uma boa hora para testar a sanidade mental de nossos parceiros de cela.
Então, quando a atmosfera pesar, não discuta. Arraste a cortina para o lado, abra os vidros e espie o pedaço de mundo que lhe coube. Você há de ter uma janela. Talvez consiga enxergar uma árvore ou duas. Talvez possa se distrair contando quantos pedestres caminham pela calçada usando máscara. Talvez enxergue um naco do céu. Ou um naco do apartamento do vizinho: xeretar, a essa altura, não é crime, eu acho.
Janela é a saída – só não leve ao pé da letra. Outro dia, mandei um WhatsApp para uma amiga que está confinada sozinha em um apê de 15 metros quadrados, a milhas de distância. Perguntei se ela tinha uma janela. Respondeu que tinha, mas morava no primeiro piso, de nada adiantaria saltar.
A obrigatoriedade de reclusão mexe com os nervos, mas o jeito é rir um pouco e lembrar que ao menos algo nos une: estamos sendo testemunhas históricas deste desconcertante mundo novo. E, se mantivermos a cabeça no lugar, seremos devolvidos pra rua assim que possível.