Você se prepara para a grande noite com todo cuidado, faz dias que espera por ela. O banho, no capricho, deixa na pele aquele cheirinho bom de sabonete, tão reconfortante que quase dá vontade de chorar. Na hora de escolher a roupa, nenhuma dúvida: vai direto na camiseta que já puiu e na calça de abrigo mais larga possível. Depois de uma certa idade, a grande noite não tem sexo, drogas, vanerão, loucuras, nada disso. É apenas uma boa e ansiada noite de sono.
Enfim deitada, sua coluna vertebral agradece. O colchão é o prêmio para quem segura no osso – literalmente – todas as suas jornadas. Você não é espírita, mas o cansaço é tanto que só pode ter se acumulado de outras vidas.
A cama está tão aconchegante que você decide que não vai ler, nem espiar a existência excitante dos outros nas redes sociais. Puxa o edredom até a cabeça, apaga a luz e fecha os olhos, já antecipando a delícia de não ser por algumas horas. É exatamente aí que ela aparece para dividir a noite com você.
Bandida. Danada. Safada. Pulguenta. Filha do tinhoso. Coisa ruim. Por que a insônia surge assim, do nada, sem aviso, sem convite, sem dar uma pista?
Quanto mais você pensa que precisa dormir, antes das seis o despertador vai tocar, mais espaço a insônia toma. No início você ainda acredita que a visita será breve. Tão logo termine de se culpar pelo trabalho que não terminou e de sofrer pelos boletos que não pagou, conseguirá desligar a alma e entrar naquele estado maravilhoso do nada. Só que a noite avança.
Você já pensou no trabalho, nos boletos, na discussão com o colega de escritório, nas provas da faculdade, na lição de casa que o seu pequeno não fez, na ração da gata que você não comprou e até na roupa que esqueceu dentro da máquina. Só lavando de novo para tirar o cheiro de cachorro molhado que, talvez seja paranoia sua, já dá para sentir no quarto.
Insônia, sua infeliz. Miserável. Medonha. Diabólica. Pérfida. Capeta. Sua biltre.
Agora ela já não é visita, chuta suas canelas, faz bololô nas cobertas. A você resta a bordinha da cama, como quando seu marido abre os braços ou quando a sua namorada executa, dormindo, um duplo twist carpado que ocupa todo o tatame, digo, o colchão. De pouco adianta cutucar aquele/aquela que, ao seu lado, ressona. O sono alheio é egoísta, mertiolate na sua ferida.
Mequetrefe. Pulha. Sacripanta. Sórdida. Chata de galochas. Futre. Nóxia. Tóxica. Insônia, sua demônia.
Olhos estalados, você faz o seu Esta é Sua Vida imaginário e em looping. A cada volta, entram mais personagens que o certo seria não lembrar. Vontade de processar uns e outros pelo sono perdido. Talvez a sua advogada encontre alguma brecha na lei para isso. Contar carneirinhos? Quem inventou esse método devia viver nas montanhas da Irlanda medieval, só pode ser isso. Contar drones também não ajuda.
Aos poucos você entra na fase dos planos mirabolantes. A exaustão é tanta que as ideias mais estapafúrdias parecem perfeitas. Argumentos para livros e séries de sucesso você já tem uns 200. E o medo de perceber a claridade da manhã começando a entrar pelas frestas da janela?
Espurca. Abantesma. Concupiscente. Intrujona. Réproba. Fedorenta. Insônia, sua excomungada.
No apartamento de cima, o som do rádio denuncia os primeiros movimentos de um dia que já veio. Justo agora que a cama parece abraçar, um calor bom vindo do corpo ao seu lado. Aliás, não fossem os roncos, você diria que era um corpo mesmo, nenhum outro sinal vital há horas. É quando seus olhos pesam, pesam, pesam até fechar, a cabeça finalmente vazia.
Então o despertador toca.
Insônia, sua desalmada. Insensível. Perversa. Malévola. Malvada. Moléstia da peste. Sua celerada.
De noite a gente se vê outra vez.