Eu estava feliz naquele quentinho um tanto apertado, mas suficiente para eu me movimentar para todos os lados. Gostava particularmente de um tum-tum-tum que ouvia o tempo inteiro, mas não um tum-tum-tum de reforma no apartamento do vizinho ou de loja de surfe. Era um som bom, compassado, e parecia que o meu coração batia no mesmo ritmo dele. Então veio uma luz e a minha vida virou de cabeça para baixo – ainda que eu não conhecesse muito bem esse conceito, a vida.
Em seguida me senti em um (essa associação só fiz bem mais tarde) açougue: pesa, mede, apalpa, olha a gordurinha, que coxa mais grossa, meu Deus! Impossível não chorar, ainda que eu não soubesse que o ato de gritar enquanto as lágrimas escorrem fosse isso, chorar. Só parei quando me levaram para os braços de alguém e, pelo tum-tum-tum, adivinhei no mesmo instante que ali era o lado de fora do quentinho de onde me arrancaram.
Depois disso, a vida – não que eu já entendesse esse conceito, a vida – foi uma sucessão de primeiras vezes. A primeira mamada, a primeira cólica, a primeira vacina, a primeira febre, a primeira fruta, a primeira papinha, a primeira palavra, o primeiro passo, o primeiro tombo, a primeira arte, a primeira palmada, o primeiro dia na creche. Nada do que aconteceu até ali me preparou para o primeiro dia na creche. Foi quando eu senti que o quentinho e o tum-tum-tum tinham ficado definitivamente para trás.
Agora eu estava por mim.
Sem proteção, a vida – e enfim eu começava a entender esse conceito, a vida – passou a me apresentar suas armas. A menina que me encheu de socos porque eu peguei a borracha da Peppa Pig dela. A diarreia na frente dos coleguinhas. Os sete pontos na testa e os dois dentes de leite quebrados na queda do trepa-trepa. As letras que eu tentava juntar, mas que não faziam sentido. As crianças que tinham o que meus pais não podiam me dar. As crianças mais bonitas que eu, ou seja, todas, na minha opinião. No futuro, meu psiquiatra encontraria no Jardim B as origens das minhas frustrações.
De lá para cá, a vida – agora eu brigava com esse conceito, a vida – nem sempre esteve do meu lado. Por exemplo:
• Quando eu não decorei as Capitanias Hereditárias e rodei e perdi as férias de verão por castigo.
• Quando eu gostava de alguém, e o alguém me ignorava.
• Quando eu mandei um nude e o destinatário vazou para a turma toda.
• Quando eu tive apendicite e perdi a viagem de formatura.
• Quando me roubaram o primeiro celular bom que comprei, e faltavam 23 prestações de 24.
• Quando eu noivei com festa para os parentes e, duas semanas depois, tomei um pé na bunda.
• Quando a construtora faliu antes de me entregar o apartamento que comprei na planta.
A maturidade, ou algo próximo disso, acabou me fazendo ver que, mesmo com todos os percalços, não havia me faltado privilégios. Esse foi mais um tapa na cara que a vida me deu. Só que dessa vez, contrariando meus métodos, não me chateei com ela.
Outro dia me vi em um espelho e quase não acreditei que era eu no reflexo. Se ainda ontem eu não me conformava com a minha acne juvenil! Como passou tão rápido?
No fim das contas, era fácil entender o conceito: era só viver.
Sorte que ainda deu tempo.