Há alguns dias, Djamila Ribeiro, uma das escritoras mais importantes do Brasil de hoje, escreveu sobre as mulheres negras que, nos escritórios, acabam sendo chamadas não pelos seus nomes, mas por apelidos sempre iguais - qualquer que seja o ambiente de trabalho: a tia do café, a tia da limpeza, a tia do lanche, a tia do banheiro.
Quando passar pela senhora que chega antes de todos para fazer o café - e o que seria de nós se alguém não fizesse o café? -, não custa dar um bom dia, dona Solange. Ou Luíza, ou Mariana, ou Patrícia. Ela não é tia de ninguém, está ali a trabalho.
O texto da Djamila, autora negra, é uma reflexão sobre o quanto esse tratamento, supostamente inofensivo, amassa quem é chamada assim. Não são Marias, Anas, Lucianas, Claudias. São as tias, independentemente da idade, em geral negras - embora não exclusivamente, ainda mais aqui no Sul. Em comum, a atividade que não costuma ser bem-remunerada e um lugar na hierarquia que impede de mandar longe quem as apelida de tia da cozinha ou de tia da faxina.
Uma coluna é bem-sucedida (acho eu) quando, para além do entretenimento, também faz o leitor pensar. A da Djamila provocou em mim um remorso retroativo, doído, pelas vezes em que não chamei uma Silvana pelo nome. Chamei de tia. Foram muitas as vezes, e em nenhuma tive a intenção de ofender. Até que li a Djamila.
Chamar de tia a senhora que faz o café é um tipo de intimidade torta, talvez. Há quem nem saiba o nome dela, todo mês tem uma tia nova. Uma não deu certo porque morava muito longe e volta e meia se atrasava, outra era cheia de problemas e vivia de cara amarrada, outra faltava sempre que um dos filhos adoecia. Chamar de tia atalha o caminho, é isso. Não é por mal, não é para humilhar, a gente imagina. Mas humilha.
Chamar de tia segrega, cria distância. Uma cena: nas festas da firma, as meninas da limpeza e mais o pessoal da portaria, da manutenção, do apoio, se concentravam em uma só mesa, ao mesmo tempo parte e apartados. O que, na época, pouco me importava. A maior parte dos bem-intencionados, entre os quais me incluo, nunca prestou atenção nessas coisas. O resultado é que, em pleno 2019, alguém precisa nos avisar que se referir a uma funcionária como "tia do lanche" é desrespeitoso. Nada a ver com o politicamente correto, embora ele seja cada vez mais necessário para um mundo, se me desculpam a expressão, menos escroto. É apenas consideração.
Quando passar pela senhora que chega antes de todos para fazer o café - e o que seria de nós se alguém não fizesse o café? -, não custa dar um bom dia, dona Solange. Ou Luíza, ou Mariana, ou Patrícia. Ela não é tia de ninguém, está ali a trabalho. Fica aqui, tão pequeninha, essa ideia.
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Programa para o fim de semana: visitar a linda São Francisco de Paula e encher os olhos de verde. Dobrando uma esquina, conhecer a livraria Miragem - com seus vários andares e recantos que parecem, de verdade, uma miragem. Uma vez por mês, no sótão onde funciona o sebo, acontece uma conversa com algum autor convidado. E quem acha que já estaria de bom tamanho assim, é porque não jantou no restaurante Castelli. Vale muito o passeio.