Se tem uma coisa que aprendi é: colunistas precisam ser muito cuidadosos ao falar de bichos. Algumas pessoas se sensibilizam mais com os bichos do que com a humanidade inteira, o que não julgo. Quem sou eu. A humanidade anda complicada mesmo, mas ainda acho que vale o esforço. Lembrei do risco de escrever sobre um cachorro a respeito de um texto publicado aqui. O título era Inventário dos Meus Bichos, sobre as minhas recordações caninas. Uma leitora saiu lascando, como assim, "inventário", uma palavra fria e calculista para se referir a animais? De nada adiantaram minhas explicações sobre o que se convencionou chamar de licença poética - no caso, prosética, se me perdoam o trocadilho infame. Outros me execraram porque falei dos cachorros da minha infância, e todos eram de raças diferentes, escolhidos e mantidos pelos meus pais. Não compre, adote.
Que culpa eu, criança há 40 e tantos anos, carrego por que não tínhamos vira-latas em casa? Não fui convidada a participar da decisão e, se fosse, com certeza concordaria com o que os pais escolhessem. Meus irmãos e eu queríamos um cachorro, qualquer cachorro. Se nos dessem um pônei, nós o batizaríamos de Rex e acreditaríamos que era um cachorro.
Fomos felizes para sempre com nossos boxers e um schnauzer para lá de rueiro, como seríamos com um vira-latas. Mas alguns leitores não perdoaram minhas memórias. Na próxima, prometo lembrar de coisas que não vivi.
Agora, enquanto escrevo, o Cachorro dorme o sono dos cachorros justos e cansados atrás da minha cadeira. Meu irmão acaba de avisar que vem buscar seu precioso daqui a pouco. Não sei, não, mas acho que vem aí Tajes x Tajes.
Hoje a coluna fala sobre um vira-latas chamado, ora veja, Cachorro. Foi adotado pelo meu irmão em Ingleses, a praia de Floripa. Os dois ficaram amigos enquanto o Cachorro passeava com seu bando e parava para ganhar um carinho, beber água, comer alguma coisa. Um dia apareceu desgarrado, entrou na casa do meu irmão e nunca mais saiu. Isso foi há quase cinco anos. O veterinário estima que o Cachorro esteja pelos nove anos de idade, alguns pelos brancos aparecendo no focinho.
Catarinense, o Cachorro veio há pouco morar em Porto Alegre e está completamente adaptado à leal e valorosa. Adorou a orla. Ama ir ao Cachorródromo dos Açorianos. Meu irmão mora no Centro Histórico e, se precisa viajar, o cão fica hospedado comigo, se estou na cidade, ou com minha irmã e suas três filhas. Em qualquer dos endereços, vira rei no primeiro minuto.
O Cachorro é o bicho mais querido que conheci. Meu irmão acha que ele sofreu muito até ser adotado, o pobre não pode ver uma vassoura que sai, apavorado, para se enfiar em algum cantinho. Quem bate em um ser indefeso desses merece, esse sim, levar umas vassouradas. O Cachorro não rasga o sofá, não come os fones de ninguém, não pega as meias, não rói as almofadas. Não me espantaria se latisse um "muito obrigado" quando é servido de ração. Necessidades? Só fora de casa, seja quando for o passeio. Mas o passeio tem que ser logo. O Cachorro é louco por uma banda.
Na rua, ele cheira tudo. Alterna paradas para cheirar as pedras, as plantas, a calçada, as árvores, com longas andanças em que parece um praticante de marcha atlética. É preciso sair com muitos saquinhos na mão, o Cachorro não poupa os canteiros do centro. E, às vezes, me coloca em saias justas. Foi eu me distrair em um dos pit stops que ele deu uma espirradinha de xixi na porta do Colégio Sevigné. Interrompi no meio, mas uma senhora que varria a calçada viu. O xingão que ela me deu ecoou pela Duque deserta. Que vergonha, deixar o bicho fazer xixi na porta de um colégio. Ela não aceitou minhas desculpas. Temos que ser mais atentos, o Cachorro e eu. Somos cidadãos e fazemos questão de andar na linha.
Agora, enquanto escrevo, o Cachorro dorme o sono dos cachorros justos e cansados atrás da minha cadeira. Meu irmão acaba de avisar que vem buscar seu precioso daqui a pouco. Não sei, não, mas acho que vem aí Tajes x Tajes.
Só devolvo o Cachorro na Justiça.