Não vim trabalhar ontem porque a minha avó entrou em trabalho de parto e quando os trigêmeos nasceram cantando o hino do Inter, o meu avô, que é gremista, ficou nervoso e a pressão dele subiu muito, então a família ficou toda lá, em vigília, porque não se pode abandonar os parentes em um momento tão delicado. (F.L., estagiário, desdobrando o chefe do setor depois de faltar na segunda-feira.)
Melhor ainda: não fazer nada que precise ser justificado com uma desculpa esfarrapada. Mas para isso, infelizmente, talvez a humanidade tivesse que começar de novo.
Quando eu estava a caminho da banca, um trem desgovernado veio na direção do meu Uber e só deu tempo de eu e o motorista pularmos no arroio Dilúvio. Infelizmente, o TCC pegou fogo quando o Fiesta explodiu. (E.V.I., universitária, explicando ao orientador por que não entregou o trabalho de conclusão de curso na data marcada.)
Eu estava no cumprimento das minhas funções quando a senhora de 60 anos que vendia picolés na rua, ao ser abordada para mostrar a licença, reagiu violentamente atirando uma cadeira de praia na corporação e xingando o efetivo, o que justificou ela ser derrubada, ficar com a cara no chão e ter seu braço imobilizado enquanto gritava de dor, pedia socorro e repetia que só vende picolé no calor de Porto Alegre, na idade em que está, porque é assim que sustenta a família - sozinha. (Guarda municipal alegando suas razões para uma abordagem.)
Conforme o combinado, eu ia entregar os originais do meu livro hoje, mas peguei um táxi e o motorista, percebendo que havia ali um futuro sucesso editorial, me sequestrou e disse que só me libertaria com vida se eu deixasse o manuscrito com ele. Aí não tive escolha, mas pelo menos agora tenho material para outro romance. Posso entregar daqui a cinco anos sem falta? (M.C.T., escritora, contando para seu editor porque não entregaria o livro contratado na data marcada.)
Eu não gostaria de demitir ninguém, então pensei em propor um novo modelo _ para quem quiser, claro, e sugerir que agora a equipe passe a receber pelas horas trabalhadas sem necessidade de carteira assinada e todas aquelas coisinhas tão proletárias que vêm junto com ela, um arranjo ótimo para todo mundo, inclusive porque vocês continuam com as mesmas responsabilidades, mas sem aqueles direitos todos que acabam pesando tanto aqui na firma. Quem não quiser pode pedir as contas agora sem problema algum, sem mágoas, eu só quero aqui na nossa equipe os colaboradores realmente comprometidos com os nossos ideais. Posso contar com vocês? (J.K.T., empresário, explicando em um vídeo porque vai terceirizar os funcionários.)
Eu estava quase chegando em casa, e levando gérberas amarelas, quando um amigo me pediu, pelo amor de Deus, para eu ir até aquela boatezinha ali na Farrapos porque ele tinha ficado preso no banheiro e ninguém ouvia os chamados por causa da música alta. Daí eu fui para lá e até achar um telechaveiro demorou muito, tanto que a gente só conseguiu contato com um quando já eram quase seis da manhã. Aí o meu amigo estava com muita fome e nós fomos tomar café da manhã em uma padaria do caminho, por isso eu só consegui chegar em casa agora, às 8h10min. As gérberas amarelas? Cacete, esqueci as gérberas amarelas na boate. (P.B.L., corretor de seguros, dizendo para a esposa por que passou a noite fora.)
Eu recebi muitos depósitos em dinheiro porque vendi um apartamento em pequenas prestações, quase no carnê, mas os depósitos tinham que ser todos no mesmo dia, e com intervalo de minutos. O pessoal que estava na fila do caixa automático até reclamou um pouco, hoje em dia ninguém tem paciência para esperar nada. (Político explicando operações suspeitas para milhões de brasileiros.)
Eu ia entregar o texto no prazo, mas fui convidada a entrar no BBB 171 e a Globo levou todos os escolhidos para um retiro em um lugar secreto onde o Kleber Bambam e a vó Naná explicaram as regras. Só que não podia trazer celular, nem computador, então não tive como escrever. Para não demorar demais, consegui um bloquinho e estou terminando aqui no avião. A aeromoça disse que o nosso pouso em Porto Alegre está previsto para daqui a dez horas _ mas talvez atrase por causa de uma tempestade de neve no caminho. (Eu avisando minhas editoras, Patrícia e Thamires, que ia demorar para entregar a coluna.)
Desculpa esfarrapada: quem nunca? Mas é melhor usar com moderação para não ficar muito na cara. Se bem que não há jeito, desculpa esfarrapada sempre fica na cara. Melhor mesmo é não usar. Melhor ainda: não fazer nada que precise ser justificado com uma desculpa esfarrapada. Mas para isso, infelizmente, talvez a humanidade tivesse que começar de novo.