Conversamos com o antropólogo Caetano Sordi do setor de patrimônio imaterial da Superintendência do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), no Rio grande do Sul.
Qual a diferença, na prática, dos bens imateriais e materiais?
Uma forma bastante prática de compreender essa diferença é aquela entre produto e processo. Via de regra, os bens materiais são produtos da atividade humana, ou seja, edificações, artefatos e acervos aos quais a sociedade atribui algum valor para serem preservados. Já os bens imateriais são as práticas, representações, saberes, técnicas e formas de expressão que constituem a cultura e, por consequência, também estes produtos. Nesse sentido, podemos dizer que quando visamos proteger bens de natureza imaterial, estamos procurando garantir a continuidade e a sustentabilidade de processos culturais, muito mais que a conservação dos traços físicos e características materiais que conferem valor aos produtos da cultura. Um bom exemplo é a pintura corporal dos índios Wajãpi do Amapá, um dos primeiros bens imateriais registrados pelo IPHAN. Como se trata de um produto efêmero, não faria o menor sentido proteger as pinturas corporais em si, tal como uma obra de arte em um museu, mas dar condições para que as novas gerações daquela etnia – a que chamamos de detentores do bem cultural – possam dar continuidade a essa prática, assim como tenham acesso aos conhecimentos e valores que conferem identidade ao seu grupo. No IPHAN, o instrumento de proteção dos bens materiais é o tombamento. Dos bens materiais, é o registro, que conta com quatro categorias: saberes, celebrações, formas de expressão e lugares. Essa última categoria pode ser considerada uma espécie de intersecção entre o patrimônio material e o imaterial, já que corresponde aos mercados, feiras, santuários, praças e demais locais onde se concentram e/ou se reproduzem práticas culturais coletivas.
Qual a importância dos patrimônios culturais?
Toda sociedade humana está assentada sobre a partilha de referências culturais, isto é, uma série de representações e valores que nos ensina quem somos e de onde viemos, conferindo sentido de continuidade entre as gerações atuais e as passadas. Muitos desses valores e conhecimentos estão impregnados em lugares ou coisas, servindo de suporte para o cultivo da memória social e da identidade coletiva dos grupos que compõem a sociedade brasileira. Assim, proteger esses lugares e coisas significa permitir às novas e futuras gerações o usufruto desses bens, o que, aliás, está consolidado nos artigos 215 e 216 da Constituição Federal.
O que pode ser considerado um patrimônio cultural?
A princípio, qualquer bem cultural, material ou imaterial ao qual a sociedade atribua valor e compreenda que deva ser protegido. O Iphan e os órgãos estaduais de proteção do patrimônio têm instrumentos específicos de
reconhecimento e acautelamento, com eficácia jurídica. No caso do patrimônio imaterial, é o registro, que sempre começa a partir de uma demanda da sociedade. Essa demanda é avaliada pelos técnicos do Instituto e acolhida ou não pelo Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, formado por representantes de diversos ministérios e entidades da sociedade civil.
Por que a gastronomia se encaixa nesse quesito?
Há poucas coisas tão culturais no ser humano quanto o ato de se alimentar. Os modos com que obtemos, preparamos, servimos e consumimos o nosso alimento dizem muito sobre quem somos. Nossa identidade é produzida não apenas pelo o que comemos, mas como comemos e com quem comemos. Além disso, em um contexto de intensa padronização agrícola e alimentar, os conhecimentos gastronômicos locais, associados a formas tradicionais de manejo ambiental, têm ganhado grande destaque no campo do patrimônio em tempos recentes, tanto no Brasil, como no Exterior. Diversos estudos associam a proteção do patrimônio agroalimentar à proteção do patrimônio genético, de maneira que muitas comunidades tradicionais ao redor do mundo são hoje considerados guardiões de recursos fundamentais para a garantia da soberania alimentar do planeta e, quem sabe, possuam a chave da sobrevivência humana em um futuro cada vez mais incerto.
No RS, de que forma a gastronomia se enquadra como patrimônio cultural?
Em primeiro lugar, é importante esclarecer que o patrimônio alimentar registrado como patrimônio imaterial se refere mais a modos de fazer – isto é, saberes e práticas arraigadas no cotidiano das comunidades – do que a receitas, ingredientes, alimentos ou insumos por si só. Mais do que conferir um título, o que se visa garantir é a
sustentabilidade de um processo cultural. Em 2018, após um intenso trabalho de mobilização social e documentação acadêmica, o Iphan registrou as tradições doceiras da região de Pelotas e Antiga Pelotas como patrimônio cultural imaterial do Brasil. Por enquanto, é o único bem imaterial deste tipo registrado no RS. No entanto, há também um processo de registro em curso do modo de saber fazer do queijo Serrano, instruído em conjunto com a Superintendência de Santa Catarina.
Qual a importância para os gaúchos em ter modos gastronômicos considerados patrimônio?
No caso das Tradições Doceiras, além de conferir valor a um conjunto de produtos longamente arraigados em nosso cotidiano e nossa memória coletiva, o registro trouxe visibilidade a grupos sociais pouco associados à ideia dos doces de Pelotas como doces finos. De fato, a pesquisa de instrução do registro, coordenada pelo Laboratório de Ensino e Pesquisa em Antropologia e Arqueologia da Universidade Federal de Pelotas – UFPel, revelou que, em paralelo à tradição doceira urbana e aristocrática, ligada à produção de doces conventais de origem portuguesa, desenvolveu-se uma tradição doceira rural e colonial na região, vinculada à produção de doces de frutas por imigrantes europeus e seus descendentes. Da mesma forma, a pesquisa revelou a importância da presença negra e do povo de terreiro no universo da doçaria pelotense, conferindo importância a um grupo historicamente marginalizado. Isso mostra que o reconhecimento do patrimônio alimentar é também o reconhecimento da diversidade cultural, especialmente em um estado como o RS, formado por matrizes culturais tão diferentes.
Como você vê a evolução do Rio Grande do Sul enquanto produtor de alimentos nos últimos anos?
A história do RS sempre esteve ligada à produção de alimentos. Da grande propriedade pastoril ao minifúndio colonial, da lavoura intensiva à a agricultura e a pecuária de base familiar, todos os nossos ciclos econômicos estiveram ligados à produção primária, de uma forma ou outra. Em tempos recentes, muito de nosso espaço agrário foi tomado pela expansão de monocultivos para exportação, o que coloca em risco a preservação de certas paisagens culturais e, com elas, sua diversidade agroalimentar associada. Nesse sentido, as políticas de patrimônio auxiliam na preservação dessas paisagens, qualificam a dieta da população e propõem um modelo de desenvolvimento alternativo ao monocultivo, conectado com as mudanças de percepção socioambiental em curso.
Você acha que a longo prazo o RS pode ter outros modos considerados patrimônio cultural?
Sim, muitos. Além do queijo serrano, já mencionado, há propostas em torno da erva mate, o que envolve um forte componente de memória e identidade indígena. Ainda que não se refira diretamente a técnicas e modos de fazer culinários, também podemos citar o inventário de referências culturais das Lidas campeiras de Bagé e do Alto Camaquã. Embora não se refira exatamente a saberes culinários, esse trabalho tematiza diversos ofícios vinculados à pecuária tradicional pampeana e, por consequência, à produção de carne bovina e ovina em campo nativo.
Como valorizar o que é da nossa cultura?
Mais do que o lugar onde algo é produzido, é preciso atentar para como este algo é produzido, que cadeias de valor são geradas e quem são seus beneficiários – uma visão que as políticas patrimoniais, na medida de suas possibilidades e da colaboração entre diversos setores da sociedade, visam desenvolver.
* Conteúdo produzido por Victoria Campos