Há mais de 200 anos a produção de queijo artesanal movimenta a região dos Campos de Cima da Serra, no nordeste do Rio Grande do Sul. Conhecido como Serrano, o queijo nasceu como uma moeda de troca entre as famílias produtoras. Hoje, exerce um papel importante na economia e na cultura do Estado.
A receita portuguesa, que leva leite cru, passou de geração em geração e se tornou símbolo da nossa história. Segundo Jussara Dutra, pesquisadora em gastronomia, cada lugar no Brasil tem o seu próprio modo de produção, que varia conforme a cultura local. Isso interfere fortemente na identidade do produto final. Por essa razão, o queijo Canastra, de Minas Gerais, é tão diferente do feito no Rio Grande do Sul, por exemplo.
– São queijos que fazíamos quando vivíamos em pequenas propriedades, quando o Brasil ainda era rural. São técnicas de preparo de sobrevivência das pequenas propriedades. A maneira de produzir embutidos, queijos e doces foi trazida pelos imigrantes europeus. São técnicas rudimentares muito específicas.
Para Jussara, o queijo artesanal Serrano é um sobrevivente, principalmente após o surgimento dos processos de industrialização, que acabaram por padronizar o paladar e os hábitos alimentares das pessoas.
– Quando conseguimos fazer com que um queijo de mais de 200 anos sobreviva, conseguimos manter o processo de diversidade cultural. É importante ressaltar que o queijo artesanal Serrano é o único produzido com leite cru no Estado.
Dados da Emater/RS apontam que, atualmente, cerca de 3 mil propriedades na região, espalhadas por 14 municípios, produzem queijo artesanal Serrano, gerando uma importante fonte de renda.
– Com o tempo, o queijo Serrano passou a ser um produto valorizado e de interesse comercial muito importante para a manutenção dos produtores do campo e para o desenvolvimento da região – comenta a pesquisadora.
A LEI
O Projeto de Lei que regulamenta a produção e comercialização do queijo artesanal Serrano foi sancionado pelo Governo do Rio Grande do Sul no início de 2017. De autoria do deputado Vinicius Ribeiro, com o apoio da Emater/RS, a lei prevê parâmetros técnicos e de higiene para a produção artesanal.
– A iguaria é 100% artesanal, concebida a partir do leite de vacas de corte, alimentadas com pastos nativos. A venda do produto é significativa e ocorre em mercados, padarias e até mesmo na beira de estradas. O reconhecimento pela lei não apenas legaliza essas pequenas queijarias como abre caminho para a implantação de métodos mais modernos de higiene e armazenamento – comenta Orlando Junior, extensionista rural da Empreedimentos de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater/RS).
No entanto, Junior alerta que ainda faltam alguns avanços importantes para a comercialização do queijo Serrano, como a realiza- ção do Serviço de Inspeção Municipal e Estadual, que legaliza a venda do produto em outras regiões do Rio Grande do Sul e Brasil.
– Ainda falta o processo mais complicado, há uma série de questões técnicas envolvidas e de dificuldades econômicas. É uma caminhada que tem avançado. O Rio Grande do Sul avançou para poder entender que o queijo daqui tem um valor histórico, cultural e econômico – comenta Junior.
Segundo ele, até então não se tinha regulamentações a grande nível, com padrões nacionais. Agora, o queijo artesanal precisa ter no mínimo 60 dias de maturação. É preciso controlar tuberculose, aftosa e outras pragas. O produtor deve passar por um curso de boas práticas de fabricação, e o único elemento de madeira permitido são as tábuas de maturação, os outros todos tem que ser de aço inox.
– Esperamos que o queijo seja mais percebido e valorizado pelos próprios produtores. O primeiro grande passo era fazer com que eles entendessem que o queijo vale muito. A notoriedade vem com a qualidade e os produtores não estavam atentos a isso. A valorização aumenta e a procura também – completa.
NA COZINHA
O chef Carlos Kristensen, que comanda o Hashi, em Porto Alegre, é um dos grandes defensores dos ingredientes regionais gaúchos. Ele mantém o projeto Internacionalmente Local, que busca valorizar os pequenos produtores artesanais do Estado, como os dos Campos de Cima da Serra que produzem o queijo Serrano.
– A ideia é que todo mundo ganhe. O produtor ganha vivendo do que ele sabe fazer e mantendo a família empregada. Eu ganho porque escolho um produto extremamente bom, o qual eu conheço até mesmo os animais. E o cliente ganha comendo um queijo de alta qualidade. Essa cadeia gira. Essa é minha maior preocupação hoje – explica Kristensen.
Carlos, que trabalha com queijo Serrano desde 2011, acredita que o próximo passo necessário para valorização do queijo é a libera- ção da venda em outras regiões do Rio Grande do Sul e do Brasil.
– Não podemos tratar um alimento que tem uma importância tão grande como um alimento proibido. Hoje a gente fala tanto em produto brasileiro e regional, e o queijo Serrano é um exemplar de altíssima qualidade. Então, precisamos cuidar bem disso.
Hoje ele consome cerca de 50kg de queijo por mês para criar seus cardápios e promover o projeto Internacionalmente Local, mantendo, assim, o rendimento de duas famílias produtoras.
– Sempre foi uma ideia fomentar a produção das famílias e ajudar o negócio dos produtores. Durante muito tempo a gente consegue manter pedidos grandes e a produção acontecendo, o queijeiro vive do meu fornecimento – conta.
Na gastronomia, o queijo Serrano agrega valor aos pratos por ser um ingrediente saboroso e complexo, que vai bem tanto em finalizações como para receitas de pratos principais. Ele é objeto de estudo no mundo acadêmico, além de ser defendido por movimentos como o Slow Food de Porto Alegre.
Kristensen avalia que etapas importantes já foram alcançadas, no entanto, ainda há muito que fazer e os avanços serão dados aos poucos.
– A gente vai seguir dando um passo atrás do outro. Que venha a libera- ção de venda dentro do Estado, que os produtores aos poucos consigam, através de uma remuneração, se estruturar um pouco mais para que o queijo mantenha qualidade. A gente tem que aprender a valorizar o que está do nosso lado, o que é nosso.