*Texto por Luiz Américo Camargo, crítico gastronômico e autor do livro Pão Nosso
Digamos assim, livremente: o paladar é um músculo. O maxilar também (ele é um osso, mas agora não vem ao caso). Ambos precisam ser treinados sob risco de cair em atrofia. O oposto disso é igualmente problemático, já que sobrecargas e exercícios agressivos provocam lesões.
Um exemplo, só para assustar. Se você come apenas comida com excesso de sódio, carregada em temperos artificiais e conservantes, lamento informar mas sua musculatura está às portas de uma contusão. Muito provavelmente, você vai achar que comida bem feita, com técnica, equilíbrio e ingrediente bom, é meio sem graça. Carece de um inexplicável quê a mais. Parece que falta presença, potência.
O paladar cansado, exaurido, acarreta coisas como: achar que um noodle de pacote soa mais japonês do que uma massa bem cortada e cozida, com caldo dashi e shoyu de primeira linha; estranhar quando um pão traz miolo complexo, casca grossa, em contraposição ao pão branquinho, lisinho, molinho, que nem exige força na mordida. Você se sente assim? Espero que não.
Agora vamos unir o paladar à audição. Você escuta música sempre no volume mais alto? E, progressivamente, aumenta o botão, de pouquinho em pouquinho? Cuidado. É mais ou menos como quem já não consegue comer nada sem acrescentar aquela dose extra de sal-pimenta-ketchup.
As analogias terminaram? Não! Do mesmo modo que o paladar cansa, ele também é desprovido de marcha à ré. Isso significa que, quando você (re)conhece algo realmente bom, não tem volta. O gabarito muda, a exigência sobe, e a gente acaba querendo comer melhor. Comece praticando nesta Páscoa: dessalgue bem o bacalhau (mas não tudo, claro), use um azeite extra-virgem de procedência garantida; invista num chocolate que seja “menos” em açúcar, em gordura, em melecas variadas, e “mais” na qualidade de matéria-prima. Descanse no feriado, mas exercite o gosto. De leve.
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