*Texto por Luiz Américo Camargo, crítico gastronômico e autor do livro Pão Nosso
Ao longo de tantos anos comendo (em restaurantes daqui e do Exterior), cozinhando, estudando, escrevendo, pensando na gastronomia, pude assistir a vários movimentos gastronômicos. A ascensão da Espanha e da Inglaterra, os nórdicos, a cozinha andina e outras tantas ondas. E, ainda que a maravilhosa “bistronomie” tivesse brilhado paralelamente a todos esses movimentos, sempre houve um certo tom de “a França não é mais a mesma”, “a França parou na nouvelle cuisine” e por aí vai.
Bem, aproveito a edição desta coluna, que surgiu para tratar de tendências, para dizer que os sabores franceses prosseguem firmes e fortes. E, a rigor, jamais estiveram fora de moda. Em meio aos atentados a Paris, mais do que nunca é hora de questionar: como pode estar ultrapassada uma tradição que gerou os melhores vinhos e queijos, a expertise dos pães, a pâtisserie mais cobiçada, o culto ao bom produto?
Ainda há dúvidas sobre as reais motivações de tantas atrocidades, e eu não vou me meter a palpitar a respeito. Deixo isso para os especialistas. Entretanto, vai ficando claro que atingir a história e os valores de um povo é algo que faz parte da estratégia de ataque. Não basta tirar vidas, é preciso ferir o lifestyle. No caso pariense, não foi por acaso que escolheram restaurantes, bares, casas noturnas. A ideia de “joie de vivre” era um dos alvos.
Se as mortes causam sofrimento extremo e sem reparação, a destruição de monumentos e símbolos visa eliminar a identidade e ferir a autoestima. Agora, querem apagar um patrimônio gustativo, ligado ao prazer, à celebração. Não conseguirão. Porque baguetes, borgonhas, terrines, reblochons, profiteroles e outras riquezas são do mundo, não guardam mais fronteiras nacionais.
Façamos, portanto, nossa resistência francesa à mesa. Sigamos visitando bistrôs, cozinhando receitas clássicas, erguendo brindes e comendo muito bem. Não é mais mera questão de lazer ou de saciar a fome. É uma afirmação de liberdade e da própria vida.