De origem grega, "eno" significa vinho, e "logia", o estudo de uma arte ou ciência. Ou seja, enologia é a ciência que estuda os vinhos. Buscando a origem da palavra, percebemos que não é de hoje que existe essa cultura. O enólogo é o especialista, com conhecimentos técnicos e teóricos, na bebida milenar.
O vinho está presente desde as mitologias grega e romana, com os deuses Dionísio e Baco. Também tem resquícios nas ânforas do Egito Antigo, fez parte de revoluções como a Francesa e, aqui no Brasil, a videira foi uma das primeiras plantas trazidas de Portugal. Vinho faz parte e conta a história mundial. Vinho é cultura e esteve presente no desenvolvimento de todas as civilizações.
Para elaborarmos a bebida dos deuses, precisamos das tão esperadas uvas, que cuidamos a cada novo ciclo no vinhedo. Faça chuva ou faça sol estamos lá, monitorando, acompanhado o desenvolvimento e torcendo para que tudo ocorra da melhor maneira possível.
A viticultura desenvolveu regiões como a serra gaúcha. Com a chegada dos imigrantes, foi ali que os italianos com alguns ramos de videira começaram o seu sustento e, hoje, temos vinícolas com vinhos premiados mundo a fora. O cuidado e amor pelas vinhas passa de geração em geração e, em passos pequenos e concisos, com auxílio da tecnologia e boas práticas agrícolas, a cada ano estamos despontando mais a qualidade das frutas e, consequentemente, produzindo bons e grandes vinhos.
O consumo da bebida no Brasil está crescendo e muito. Os nossos produtos estão ganhando destaque e, se pararmos para pensar, o país é muito novo no cultivo de uvas se comparado ao velho mundo. Estamos desenvolvendo nossos terroirs com base em pesquisa, em acompanhamento climático e, safra após safra, vendo nossos destaques.
No dia 22 de outubro, foi comemorado o Dia do Enólogo e, nas minhas redes sociais, escrevi que há 10 anos, quando me formei em Enologia, tinha que explicar para as pessoas o que eu fazia e, hoje, quando falo que sou enóloga a reposta é outra. Vejo o interesse, o brilho no olhar de quem consome vinho. Vinho envolve, agrega e desperta esse interesse.
Ao mesmo tempo em que estamos em um dos momentos mais importantes da história da enologia brasileira, evoluindo o mercado, aumentando o consumo, sendo reconhecidos mundialmente pela qualidade dos produtos e estarmos na cadeira da presidência da Organização Internacional da Vinha e do Vinho (OIV) - no mais alto escalão do setor mundial representados por um mulher brasileira -, nos deparamos com o insulto que enologia é uma fraude, uma puxada de tapete, um desdém à história, à cultura do sustento de muitas famílias.
Ninguém precisa morrer de amores pelo vinho e muito menos consumir, mas acabar de vez com a enologia não é tão simples assim. O caso, citado na coluna de Hélio Schwartsman, publicada na Folha de S. Paulo, que gerou muito burburinho entre meus colegas de setor foi a troca de vinhos em um restaurante. De um lado, um casal escolher o vinho da casa para acompanhar o prato, sem ser o protagonista. De outro, empresários escolheram o Château Mouton Rothschild, o famoso premier cru classé da região de Bourdeaux, na França. O primeiro, um vinho de R$ 100, já o francês custava R$ 11 mil. Os vinhos foram servidos trocados, ambas as mesas não se deram por conta e curtiram o jantar até o restaurante anunciar o ocorrido aos clientes.
Como não se deram por conta? Meu Deus, um absurdo!
O vinho é assim mesmo, faz parte do momento, independentemente do valor da garrafa. O vinho de R$ 100, servido no lugar do Bourdeaux, entregou a experiência, a comida estava boa, o papo também e o vinho cumpriu o seu papel. Para o casal que degustou o vinho de R$ 11 mil, a bebida não era protagonista desde o inicio, compondo o jantar como um mero coadjuvante. E o que tem de errado nisso? Ao meu ver, nada. Se ambos saíram felizes e o vinho cumpriu seu papel, é o que importa.
Nós enólogos e sommeliers estudamos a fundo o solo, o clima, a safra, as variedades de uvas e entre outras técnicas. O consumidor final quer tomar o vinho, que seja bom pra ele e basta. Quando eu vou degustar um Bourdeaux, eu paro e me dedico com o que está servido na taça para entender e sentir o que o vinho tem para me mostrar. Quando estou com amigos, comendo uma pizza, eu simplesmente bebo. Não é desmerecer um ou outro, mas vinho é momento, é ocasião, é a situação.
Estamos sempre evoluindo nas análises sensoriais do produto, quando estamos no momento de degustação, nos entregamos e nos concentramos em todas as sensações organolépticas do produto. Para isso que estudamos. Mas, quando o momento é de lazer, nem sempre eu me dedico a sentir os aromas, afinal, não estou trabalhando e sim curtindo a ocasião. Na situação do restaurante, se eu tivesse pedido o vinho de R$ 100, degustando o produto no decanter, talvez não identificaria que era um Château Mouton Rothschild, poderia o vinho me chamar atenção e querer ver o rótulo ou não. O vinho, nesse momento, não era o protagonista, ele fazia parte da situação e pronto. Para os empresários que consumiram o vinho de R$ 100, achando que fosse o Bordeaux, o brinde, a comemoração, o momento era mais importante que o rótulo e, também pode ser que fossem consumidores não tão apegados ao mundo do vinho.
Talvez a fraude da enologia, seja elaborar vinhos que agregam e criam momentos independente do valor. Colocamos amor, propósito, história, cultura e dedicação dentro de cada garrafa, seja ela custando trinta ou mil reais. O vinho tem esse poder, ele envolve as pessoas, é versátil e tem um para cada momento. O mesmo rótulo pode servir para comemorar a casa nova, servido em um copo sem haste, mas também pode ser bebido em uma taça para brindar um aniversário. Você insere e dá importância a garrafa quando e se quiser, e não tem nada de esnobe nisso pelo contrário, tem conhecimento e vontade própria de quem vai beber.