A cachaça é a bebida que melhor simboliza o povo brasileiro, apesar de ser pouco valorizada na própria terra. Rica e complexa, adquire as características da região em que é produzida. E, como se não bastasse, sua história se confunde com a própria história do Brasil, começando lá nas primeiras décadas do século 16, com os engenhos e as fazendas de cana de açúcar.
A consultora Isadora Fornari, que começou a gostar de cachaça influenciada por seu pai e se especializou quando percebeu que era uma forma de valorizar o próprio país, explica que é possível contar a história do Brasil e de seu povo por meio dessa bebida.
- Com ela conseguimos traduzir costumes, tradições, hábitos e até mesmo religião. Tudo isso apenas analisando a produção e o consumo de cachaça no país - garante.
Apesar de contar com uma produção industrial de larga escala, é a fabricação artesanal que mantém as características necessárias para uma cachaça de qualidade. Hoje já são mais de 40 mil produtores no Brasil inteiro, embora a maioria não seja registrada. Tudo começa no plantio da cana de açúcar: sem utilização de agrotóxicos. Depois, é cortada à mão e moída em até 24h após a colheita para evitar contaminação com compostos indesejáveis. Em seguida, o caldo de cana fresco será fermentado e depois destilado em alambique de cobre - parte importante do processo pois é responsável por retirar aromas desagradáveis da bebida.
- O processo industrial não tem flexibilidade de produção. A bebida é destilada em colunas de inox, perdendo a característica da cana e gerando um álcool mais neutro - explica Felipe Jannuzzi, um dos criadores do Mapa da Cachaça, projeto que tem como objetivo valorizar a bebida e apresentá-la como identidade cultural do brasileiro. - Alguns rótulos industriais perdem as características de tal forma que é preciso adoçá-los. A legislação permite adicionar até seis gramas por litro, mais que isso ela passa a ser chamada de "cachaça adoçada".
Após o processo de destilação, a cachaça é engarrafada, armazenada ou envelhecida em barris de madeira. E é nessa etapa que o Brasil se diferencia dos demais países. Enquanto o mundo conhece basicamente o carvalho, a nossa diversidade permite utilizar diferentes tipos de madeira dependendo das características que se deseja na bebida.
- No processo de produção da cachaça, todas as etapas influenciam, desde o tipo de cana escolhido até o tipo de levedura. Mas a etapa da madeira é a que mais se destaca, pois representa mais de 60% das características da bebida - analisa Jannuzzi.
Logo que sai do alambique, a cachaça tem um aroma mais doce e muita picância no sabor. É com a passagem pela madeira que ela vai enriquecer e ganhar complexidade. Cada madeira vai gerar uma particularidade diferente. Entre as mais usadas estão amburana, jequitibá e jequitibá-rosa, ipê, bálsamo e amendoim.
- A amburana, por exemplo, vai criar cachaças mais doces,com notas como mel e canela. Já o bálsamo tem características mais herbais, como anis e erva-doce - ensina Isadora.
Mesmo com o preconceito e a falta de informação rondando o mundo da cachaça, a bebida tem atraído curiosos e adeptos tanto entre o público, quanto entre os donos de bares e restaurantes. E já considerada uma tendência a degustação da cachaça pura, em drinks que vão muito além da caipirinha ou em harmonizações de almoços e jantares.
Templo da cachaça em Porto Alegre
Criado para ressaltar a brasilidade desde a gastronomia e a bebida, até a decoração e a música, o Matita Perê, de Porto Alegre ostenta com orgulho a posição de maior cardápio de cachaças da Capital. Hoje são 110 rótulos, que em breve serão aumentados para cerca de 200.
- No bar, fazemos brincadeiras com drinks clássicos e criamos nossa versão com a cachaça. Um dos mais pedidos é o Flor de Maracujá, que leva também maracujá e baunilha. Entre as capirinhas, a mais pedida é a de cachaça e mel - revela Filipe Stella, um dos sócios do Matita Perê. - Também promovemos degustações de cachaça, que tem atraído muita gente com vontade de conhecer a bebida, de se esclarecer no assunto.
Filipe ainda completa:
- A curiosidade pela cachaça cresceu. E isso está um pouco ligado ao orgulho de ser brasileiro, à melhora econômica que começou há alguns anos, à Copa, às Olimpíadas. E aos poucos conseguimos acabar com o preconceito em torno dela.
Atualmente, o maior consumo de cachaça em bares e restaurantes é por meio da caipirinha, mesmo que apenas de 20 a 30% desses drinks sejam feitos com a bebida brasileira em contrapartida à vodka, que detém a maior parcela.
- Muitos lugares vendem vodka premium mas não têm interesse em investir na cachaça por imaginarem que os clientes não vão notar a diferença - atenta Isadora. - O restaurante Aprazível, no Rio de Janeiro, inverteu as estatísticas desde que implantou a cachaça artesanal no cardápio: 80% das caipirinhas pedidas são com a cachaça.
NO ALAMBIQUE
Quando destilada a cachaça deve ser separada em três partes, chamadas Cabeça, Coração e Cauda. Primeiro, se retira a Cabeça, no início do processo, para que sejam eliminados elementos prejudiciais como o metanol. O Coração, a melhor parte da cachaça, faz bem à saúde se consumido com moderação. No fim da destilação, é retirada a Cauda, momento em que serão descartados metais pesados.
- A produção de cachaça tem tudo para ser sustentável, pois gera subprodutos importantes ao longo do processo. Um exemplo é o etano, que pode ser usado para abastecer a própria fazenda e o engenho - explica Isadora. - O vinhaço, ou vinhoto, também é utilizado para outros fins, como fertilizante, podendo adubar o canavial.
O PRECONCEITO HISTÓRICO
Já virou uma questão cultural do brasileiro: o que vem de fora é melhor. Isso acontece também com o vinho. A cachaça foi injustiçada em diferentes períodos históricos e carrega o preconceito até hoje, quando por muitos é considerada uma bebida de menos qualidade.
Jannuzzi explica que a indústria da cachaça foi muito perseguida, desde os tempos em que o Brasil era uma colônia, pois havia o medo da concorrência com a bagaceira (destilado da uva), produzida em Portugal. Segundo ele, sempre foi difícil a produção de cachaça, o que prejudicou culturalmente o produto. Isadora tem ainda outra versão:
- Estou fazendo uma pesquisa para entender em que época da história começou esse descaso com a cachaça. Pelo que apurei, tudo indica que foi entre o fim da escravidão e o começo da República. No Brasil Colonial, era até sinônimo de requinte consumir cachaça e inclusive teve importância econômica ao salvar Portugal de algumas crises. Com o fim da escravidão, porém, a bebida passou a ser muito consumida por ex-escravos que sem ter o que comer, viam na cachaça uma forma de enganar a fome e aguentar dia de trabalho.
O CONSUMO
O consumo de cachaça ainda é fraco, mas aos poucos o mercado consumidor vai se formando, com um incentivo aqui e ali, com curiosos querendo saber mais, com a informação se espalhando. O mercado de bebidas está saturado, as pessoas querem novidades e aos poucos vão descobrindo o que o Brasil tem a oferecer.
São Paulo e Rio de Janeiro já contam com bares especializados em cachaça, e, em Porto Alegre, o Matita Perê é referência. O bar conta com rótulos de diferentes partes do país, de estados como Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro, Mato Grosso, Pernambuco, Bahia e Paraíba. No cardápio, drinks especiais, que combinam a cachaça com diferentes ingrendientes, que vão desde baunilha a licor de café.
E com tantos rótulos disponíveis, como fazer para selecionar os melhores para a carta do bar?
- Claro que há uma dificuldade de selecionar, há muita coisa no mercado. Presto atenção principalmente em concursos, nos campeões que estão sempre nas cabeças de concursos. Geralmente têm qualidade e não são tão conhecidos - conta Filipe.
PARA DEGUSTAR
Isadora Fornari dá algumas dicas na hora de degustar uma cachaça. Confira abaixo:
1. Repare se a bebida tem o selo do M.A.P.A., ou seja, o registro do Ministério da Agricultura.
2. Em posse da garrafa, abra a tampa e sinta o cheiro, balançado levemente abaixo do nariz. Se o aroma agradar, coloque em uma taça pequena, facilita na hora de explorar os aromas, ao contrário dos copos tradicionais.
3. A cachaça deve ser límpida e translúcida.
4. Gire a taça para reparar se há licorosidade, as famosas lágrimas. Quanto mais envelhecida, mais licorosa a bebida deve ser.
5. Leve a taça ao nariz e sinta os aromas. Preste atenção e note se algum aroma te traz lembranças.
6. Experimente, deixando descansar um tempo na língua e só depois engolindo. Não esqueça de respirar apenas pelo nariz, isso facilita o caminho dos aromas e sabores.
7. Não esqueça: virar a cachaça é um desrespeito com a bebida, que deve ser apreciada como qualquer outra.
O MAPA DA CACHAÇA
Criado por Felipe Jannuzzi e Gabriela Barreto, o Mapa da Cachaça busca conhecer a história dos produtores e mapear o caminho da bebida no Brasil inteiro. E já virou referência sobre a bebida no Brasil e no Exterior. O projeto tem como objetivo valorizar o consumo moderado e inteligente da cachaça, além de apresentá-la como identidade cultural do brasileiro e auxiliar na valorização e divulgação do produto.
A partir de uma parceria com o Ministério da Cultura, o Mapa abriu o tema para o mundo todo com um projeto que circulou pelos estádios na época da Copa do Mundo e relacionou cachaça e gastronomia com um guia bilígue produzido com o Destemperados, com vídeos, eventos e totens localizados nos estádios.
Este ano, o Mapa tem novos projetos, como um livro que apresenta a produção em diferentes partes do país, um novo site atualizado e uma nova plataforma para venda online de cachaça, que vai se focar no mercado e na divulgação de informações sobre o assunto.
UM LIVRO
Escrito por Renato Figueiredo, o livro De Marvada a Bendita apresenta aos leitores o mundo da cachaça. Entre os assuntos, ele aborda temas como cachaça artesanal e aguardente, formas de apreciar a bebida, dicas para combiná-la com pratos e o melhor jeito de escolher uma cachaça.
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* Conteúdo produzido por Juliana Palma