A teledramaturgia vive um momento inédito no que diz respeito à representatividade. As três novelas da TV Globo trazem protagonistas negras: Duda Santos em Garota do Momento, Jéssica Ellen em Volta por Cima e Gabz em Mania de Você. O trio sabe da responsabilidade que carrega e valoriza a ancestralidade. Para que elas pudessem estar nesse lugar, nomes como Ruth de Souza (1921-2019), Léa Garcia (1933-2023), Zezé Motta e Taís Araújo abriram espaço.
Em 73 anos de teledramaturgia no Brasil, atores e atrizes negros trilharam um árduo caminho em busca de mais espaço. Até pouco tempo atrás, ficavam relegados a personagens com posições subalternas, empregadas domésticas, motoristas e, no caso de novelas de época, escravizados.
No Dia da Consciência Negra, celebrado hoje, relembre como a questão racial foi mostrada na telinha nas últimas décadas.
Polêmica
Ruth de Souza foi a primeira atriz negra a ter um papel de destaque em novelas da Globo. A Cabana do Pai Tomás, exibida pela emissora entre 1969 e 1970, era baseada no livro homônimo da norte-americana Harriet Beecher Stowe (1811-1896). Ruth interpretou tia Cloé, esposa de Tomás (Sérgio Cardoso). O problema é que Sérgio Cardoso era um homem branco, e, para viver o personagem, pintava o rosto e o corpo de preto, usava peruca e colocava rolhas no nariz.
A técnica, conhecida como blackface, causou revolta e provocou manifestações de repúdio na época, de acordo com o site Memória Globo.
Pioneira
Embora muitos considerem Taís Araujo a primeira atriz negra a protagonizar uma novela, o site Primeiros Negros aponta Iolanda Braga (1941-2021) como pioneira. Foi em A Cor da Sua Pele (1965), na extinta TV Tupi, que trouxe também o primeiro casal inter-racial da televisão: Iolanda Braga e Leonardo Villar (1923-2020). A atriz também foi a primeira mulher negra a estrelar uma campanha de cosméticos. O mais curioso é que os produtos Belinda eram um creme clareador, que prometia “tornar a cútis mais clara”, e um “shampoo alisador”. Ou seja, feitos para deixar as mulheres negras com aspecto de mulheres brancas. Surreal.
Preconceito
Em 1984, a novela Corpo a Corpo, de Gilberto Braga (1945-2021) foi alvo de críticas por parte do público. Muita gente rechaçou o casal formado por Sônia (Zezé Motta) e Cláudio (Marcos Paulo – 1951-2012), por ser uma mulher negra e um homem branco. Fora de cena, Zezé foi hostilizada.
– O Marcos Paulo chegava em casa e tinha recados na secretária eletrônica dele dizendo: “Eu não acredito nesse casal, você beijando aquela mulher horrorosa”. Teve um homem que falou: “Se a Globo me obrigasse a beijar essa negra feia, eu lavaria a boca com água sanitária quando chegasse em casa”. Umas coisas horríveis – lembrou a atriz em participação no programa Encontro, em 2022.
Marcante
Aos 17 anos, uma jovem atriz chamava a atenção do público na novela Xica da Silva (1996), da extinta TV Manchete. Era Taís Araujo, que logo em sua estreia encarnou a icônica personagem, eternizada no cinema por Zezé Motta em 1976. Na trama adaptada por Walcyr Carrasco, inspirada na história real de Francisca da Silva de Oliveira (1732-1796), uma escravizada se torna sinhá ao descobrir que seu pai é de origem nobre. As cenas de violência, sexo e nudez alavancaram a audiência da novela, considerada a última obra de sucesso da emissora, que encerrou suas atividades em 1999.
Sucesso de audiência
Da Cor do Pecado (2004), primeira novela solo de João Emanuel Carneiro, alçou Taís Araujo a seu primeiro papel de protagonista na Globo. Vista pelos olhos de 2024, há algumas problemáticas na trama, a começar pelo título. A expressão hoje em dia caiu em desuso, já que remete à sexualização e objetificação da mulher negra, uma das pautas discutidas pelo movimento negro atualmente. Afora isso, a história teve boa aceitação do público e crítica, e certamente foi o estopim para que muitas atrizes da nova geração sonhassem com o estrelato, afinal, finalmente se viam na telinha. Taís Araujo andou para que Duda Santos, Jéssica Ellen, Gabz, Ramille, Sheron Menezzes e tantas outras pudessem correr.
Representatividade
Em 2023, o jornal britânico The Guardian destacou a importância da presença de atores e atrizes negros como protagonistas nas três novelas em exibição: Amor Perfeito, Vai na Fé e Terra e Paixão. O caso mais emblemático é Vai na Fé, com cerca de 70% de atores negros no elenco. Amor Perfeito também merece destaque por mostrar um elenco diverso, apesar de ser ambientada entre as décadas de 1930 e 1940.
Novos tempos
No ar atualmente, Duda Santos, Jéssica Ellen e Gabz simbolizam uma luta que vem sendo travada há décadas. Intérprete da mocinha Beatriz em Garota do Momento, Duda celebra a importância da representatividade atual.
– Sempre quis ser uma princesa e minha família sempre quis ver uma princesa (negra) na televisão. Agora estou aqui contando esse conto de fadas. É muito emocionante estar nesse lugar de representar esse tanto de menina que parece comigo, ser o sonho da minha versão pequena – contou em entrevista à Marie Claire.
Jéssica, a Madalena de Volta por Cima, também falou sobre o assunto na coletiva de imprensa da novela:
– Estamos vivendo um momento muito feliz na televisão, no audiovisual e na dramaturgia de forma geral. É algo que vem sendo construído há muito tempo – destaca, citando Zezé Motta e Ruth de Souza:
– Elas abriram o caminho para que a gente pudesse, hoje, estar com tantas pessoas pretas na tela, tendo essas diversidades expostas e sendo representadas. É um momento de muita beleza, mas, ao mesmo tempo, de muita responsabilidade.
No ar como Viola, em Mania de Você, Gabz reforça, em conversa com a Glamour:
– A representatividade é fundamental, especialmente no audiovisual, onde vemos corpos e histórias que refletem nossa diversidade. Acredito no poder do audiovisual para promover mudanças sociais reais, ampliando nossa percepção e gerando reflexões sobre questões como o racismo.