As discussões a respeito do remake de Vale Tudo povoam as redes sociais. Responsável pela adaptação, Manuela Dias contou que fará uma história mais "paz e amor", sem tocar tanto nas feridas sociais e políticas da novela de 1988. Tudo isso faz pensar se, nos dias atuais, alguns autores teriam espaço na telinha. Um deles é Gilberto Braga (1945-2021), que colocou na boca de personagens como Odete Roitman (Beatriz Segall) e Maria de Fátima (Gloria Pires) falas ácidas e repletas de sarcasmo. Algumas verdades, mas também várias barbaridades fizeram de Vale Tudo uma obra-prima da televisão brasileira, até hoje lembrada pelos noveleiros saudosistas.
Mas como foi o processo de criação de novelas como Vale Tudo, Rainha da Sucata (1990), Celebridade (2003), entre outras? Na biografia de Gilberto Braga, lançada este ano pela editora Intrínseca, Artur Xexéo e Mauricio Stycer desnudam o criador e os bastidores de sua criação, que desde a década de 1970 fez história na teledramaturgia. Xexéo, responsável pelas primeiras entrevistas com o autor, faleceu em junho de 2021, antes de finalizar o trabalho. Meses depois, o próprio Gilberto nos deixou.
Foi assim que Gilberto Braga: O balzac da Globo ficou sob a responsabilidade de Stycer, que conta em bate-papo um pouco de como foi esse processo:
Qual foi a maior dificuldade que você encontrou ao dar seguimento ao trabalho iniciado por Xexéo?
Mais do que uma dificuldade, eu diria que o maior desafio que encontrei ao aceitar prosseguir com o trabalho iniciado pelo Xexéo foi compreender qual o rumo que ele pretendia dar ao livro. Em outras palavras, achei que eu tinha a obrigação de seguir um plano do Xexéo, mas ele, infelizmente, havia deixado apenas pistas a respeito. Com base em algumas anotações que herdei e comentários dele nas entrevistas com Gilberto, assim como em conversas que tive com Paulo Severo, seu companheiro de décadas, intui alguns assuntos que Xexéo pretendia privilegiar ou realçar, como por exemplo o trabalho de crítica teatral em O Globo, e compreendi que alguns outros temas deveriam ter menor destaque. Em todo caso, como registro no livro, é minha a responsabilidade pelas escolhas e eventuais erros de avaliação.
Quais são as qualidades que você acha que fizeram das obras de Gilberto Braga inesquecíveis e atemporais?
Gilberto Braga foi o maior protagonista de uma era, entre as décadas de 1970 e 1990, em que as novelas paravam o Brasil. Produziam discussões, mudavam comportamentos. Desde cedo, Gilberto arriscou abordar na tela temas tidos como polêmicos, ou tabus, como racismo, homossexualidade, machismo, preconceitos de classe. Não foi o único, diga-se, mas foi um dos primeiros e mais corajosos. Num gênero menor, visto como descartável por muitos, ele conseguiu se conectar com grandes audiências e colocar o Brasil na tela. Várias de suas novelas, a rigor, ajudam a contar a história do país. A mão pesada da Censura, as reações de diferentes setores da sociedade a algumas tramas, o retrato acurado de parte da elite, o grito de revolta com a corrupção e a impunidade, tudo isso somado constrói um retrato do que foi o Brasil no período em que Gilberto escreveu suas novelas e minisséries.
Se estivesse vivo, Gilberto escolheria qual de suas novelas para criar um remake hoje em dia?
Como conto no livro, ele fez essa escolha muito claramente. Em 2017 ou 18, Gilberto apresentou à Globo o projeto de fazer uma releitura de Brilhante. Seria uma novela para a faixa das 23 horas, um novo horário que a Globo abriu em 2011, com o remake de O Astro, de Janete Clair, escrito por Alcides Nogueira e Geraldo Carneiro. Brilhante, exibida em 1981, foi uma novela que traumatizou Gilberto por causa da ação da Censura, que proibia qualquer menção à sexualidade de um dos protagonistas. Em parceria com João Ximenes Braga, e com a colaboração de Denise Bandeira, Gilberto buscou reescrever essa trama, como de fato ele gostaria de ter feito na década de 1980. Com sessenta capítulos, rebatizada como Intolerância, e ambientada na década de 1950, foi entregue à Globo, mas nunca produzida. O cancelamento da faixa horária das 23 horas, em 2019, foi a justificativa oficial para o engavetamento de Intolerância.