O que faz um influenciador digital? Há alguns anos, esse questionamento era frequente a respeito de celebridades que surgiam nas redes sociais, e não na televisão, nos teatros e nos cinemas. Se antes para ficar famosa a pessoa tinha que se destacar artisticamente nesses meios, hoje o caminho pode ser feito de forma inversa: alguém que começou na internet pode ser escalado como protagonista de uma novela das 21h, como ocorreu com Jade Picon, ou para um filme natalino da Netflix, o caso de Gkay.
Nos últimos meses, o assunto tem gerado uma série de debates. Pelo lado dos produtores, contratar influenciadores é vantajoso porque essas celebridades já contam com um público próprio nas redes sociais. Porém, a escolha de pessoas sem formação e experiência como atores deixa a classe artística frustrada.
No caso de Jade Picon, que ganhou fama no Instagram antes de entrar no time Camarote do BBB 22, sua escolha para o papel da antagonista Chiara na novela Travessia gerou uma onda de críticas. Não é de hoje que celebridades de outras mídias são chamadas para atuar, mas, até então, um ex-BBB nunca havia começado já como protagonista — Grazi Massafera, por exemplo, atuou em vários papéis secundários antes de ganhar destaque.
— Está muita confusão hoje em dia na nossa indústria, na nossa profissão. Celebridade, famoso, está tudo muito misturado, vira ator, vira atriz, vira artista — desabafou a atriz Samantha Schmutz, em maio deste ano, nas redes sociais. — É muito difícil ser artista independente, você não tem a máquina te ajudando e te fortalecendo, os artistas são massacrados. Eu vejo milhões de amigos meus tendo que desistir por conta disso, porque não tem a ajuda do algoritmo (das redes sociais), a coisa não anda.
Gkay, que começou com vídeos de humor na internet, já acumula trabalhos de atriz em produções da Amazon Prime Video, do Multishow e da Netflix. Nessa última, ela é o rosto principal da comédia romântica Um Natal Cheio de Graça, que estreia na próxima quarta (30). E, assim como Jade, a influenciadora vem recebendo críticas.
Como explica Vicente Moreno, professor e coordenador dos cursos de Realização Audiovisual e Produção Audiovisual da Unisinos, o processo de escolher um protagonista passa por vários critérios que não são necessariamente o talento. As características do projeto, suas ambições comerciais e a mídia na qual será exibido são fatores determinantes:
— Os influenciadores digitais são, a sua maneira, performers. Criam nas redes uma persona, uma personagem, e uma forma de se comunicar com o seu público. Portanto, não me parece tão estranho que estejamos começando a ver a transição de influenciadores para outras artes performáticas. No entanto, atuar em um filme, série ou novela, com uma dramaturgia ficcional, traz desafios diferentes daqueles enfrentados no Tik Tok ou Instagram.
Número de seguidores já é requisito
A escalação de influenciadores para atuar como atores é a ponta do iceberg de uma mudança na indústria audiovisual brasileira. Atores têm relatado que alguns testes de elenco questionam o número de seguidores nas redes sociais.
— Se você é alguém com mais de um milhão de seguidores, teu valor será um. Se você tem menos, será outro — explicou Aline Borges, a Zuleica de Pantanal, em entrevista a GZH. — Quando comecei a novela eu tinha 75 mil seguidores e hoje tenho 215 mil. Para mim, isso é coisa para caramba, só que não é nada se você for falar de valores. E as empresas estão cada vez mais ligadas nesse número de seguidores que o ator tem no Instagram e nesse lugar eu ainda estou engatinhando. O valor do artista hoje é algo muito confuso.
Humberto Carrão, no ar em Todas as Flores, também já falou sobre o mesmo.
— Acho triste quantidade de seguidor ajudar a escalar ator. Um milhão de seguidores significa que você vai ganhar mais no seu salário, nas propagandas. Então, não pode perder seguidor nem se comprometer — comentou, em entrevista ao jornal O Globo.
Na avaliação do professor Vicente, os trabalhos de influenciador e de ator têm semelhanças, mas são diferentes:
— Um ator bastante ativo em teatro, televisão e cinema, não necessariamente dedica tempo e energia em construir uma persona atraente nas redes sociais, quanto mais interagir com uma massa de seguidores — pontua. — Selecionar um ator ou atriz pelo número de seguidores me parece uma proposta absurda, por vários motivos. Em primeiro lugar, pois coloca a popularidade acima de todos os outros fatores que levamos em consideração em uma seleção de elenco, mas também por partir da presunção de que o público cativo desse influenciador será automaticamente atraído ao projeto, o que nem sempre é verdadeiro.