Um grande personagem é feito de boa atuação, direção idem, diálogos bem escritos, capacidade de representação de questões sociais e humanas relevantes. Certo? Sim, mas não apenas isso. É fundamental que a curva dramática desse personagem seja coerente e consistente. De onde ele vem, onde chega (efetivamente) e o que carrega consigo nessa jornada.
Foi assim que se constituíram os protagonistas nos quais reside grande parte da força de algumas das maiores séries da atual “era de ouro” da televisão, de Sopranos a Mad Men. A que melhor constrói – em todas as fases – a incrível trajetória de um grande personagem, manipulando o tempo estendido das narrativas seriadas para dar consistência a essa construção, talvez seja Breaking Bad. Sublinhe-se o talvez, assim deixamos preferências pessoais de lado e seguimos na argumentação que este texto quer trazer.
Encerrada a última temporada de Breaking Bad e, assim, finalizada a jornada de Walter “Heisenberg” White, naturalmente, os fãs ficaram órfãos. Pois, para aplacar a lacuna e surfar na onda do sucesso da série, em 2015 veio a derivada (spin-off, como a indústria chama) Better Call Saul. Uma produção curiosa e despretensiosa, que manteve as licenças narrativas e visuais “experimentais” da original (para o contexto da TV, é claro), propondo inicialmente contar a história pregressa de um dos muitos bons personagens secundários de Breaking Bad. Um entre os vários bem construídos porém acessórios na narrativa em torno do protagonista, ou seja, sem tanto tempo de tela e, em consequência disso, sem tanta profundidade.
Ocorre que, graças ao talento de seus roteiristas e encenadores, Better Call Saul logo deixou de ser somente uma série sobre Saul Goodman (Bob Odenkirk), o advogado de “porta de cadeia” que parece ter adentrado o mundo do crime como um estranho, espécie de malandro inocente adaptado ao contexto do comércio de drogas da fronteira entre México e EUA. Conforme as temporadas foram passando, surgiram e se afirmaram Kim (Rhea Seehorn), a colega correta atraída pelos desvios de caráter do protagonista; Nacho (Michael Mando), o jovem traficante que circula entre facções rivais; Howard (Patrick Fabian), o advogado ambicioso transformado no antagonista perfeito; Lalo (Tony Dalton), chefe do cartel, na mesma medida cruel e perspicaz. Isso sem contar a relação repleta de nuances de Saul com seu irmão bem-sucedido, Chuck (Michael McKean), e os personagens já conhecidos de Breaking Bad, como o, digamos, surpreendente dono de uma rede de fast-food Gus (Giancarlo Esposito) e o vovô do tráfico Mike (Jonathan Banks).
Pois o final de Better Call Saul se avizinha, o que significa que é preciso fechar as curvas dramáticas desses personagens e encerrar em definitivo as trajetórias daqueles que não estão em Breaking Bad. E isso tem tornado as semanas derradeiras da série absolutamente épicas.
A palavra épica não está aqui por acaso. Trata-se de heróis, todos erráticos, como os heróis da melhor dramaturgia. De modo geral, pode-se dizer que foram forjados nos próprios equívocos ou, se não isso, tiveram seus destinos selados por estes. O culto ao “vencedor” levou à criação da figura do “anti-herói”, o que é uma contradição em termos, pois errar muitas vezes é o que de fato humaniza – as melhores séries da TV são uma prova. Em Better Call Saul, esses erros acabam envolvendo um grande personagem com outro, entrelaçando as jornadas desses derrotados. Os criadores Peter Gould e Vince Gilligan, também responsáveis pelos roteiros dos episódios, rechearam as primeiras temporadas de idas e vindas no tempo, abrindo perspectivas que, sobretudo a partir da quinta e penúltima temporada, começaram a se fechar. Há respostas a todas as questões lançadas previamente – o que é menos comum do que deveria ser, ainda mais com a potência que essas respostas têm em Better Call Saul.
Do ponto de vista narrativo, um dos segredos da série são as elipses, que estimulam o envolvimento do espectador à medida que o forçam a preencher lacunas de informação para compreender os atos dos personagens. Os chamados “tempos mortos” são disfarces, o que remete ao melhor cinema contemporâneo: o que se vê na tela parece desimportante para a construção dramática, mas é justamente aí que a percepção do público é ativada, em geral para entender o contexto em que a ação transcorre.
Também nesse sentido Better Call Saul poderia parecer uma produção menos badalada, ou direcionada a poucos, e não ao grande público. Seu sucesso, com prêmios conquistados, audiência consolidada e elogios da crítica, só mostra que esse é um equívoco de quem, na verdade, está desrespeitando a inteligência da audiência. O público quer qualidade. Em Better Call Saul há de sobra.
Como ver
Better Call Saul é uma produção AMC/Netflix. Criação: Peter Gould e Vince Gilligan. A parte final da sexta e última temporada tem novos episódios disponibilizados semanalmente às terças-feiras, até 15 de agosto. Todo o conteúdo já exibido está disponível na Netflix.