O inverno chegou e passou para Game of Thrones, um dos maiores fenômenos da história da televisão, que estreava na HBO há 10 anos, em 17 de abril de 2011.
Superlativa em todos os aspectos, a produção colecionou adjetivos ao longo dos anos: foi a série mais vista, mais premiada e mais pirateada do mundo. Conquistou 59 troféus do Emmy, entre 160 indicações. Reuniu pelo menos 19,3 milhões de espectadores para o episódio final ao redor de televisões e computadores em 2019 — contando apenas os EUA.
Agora, as intrincadas intrigas políticas e sobrenaturais de Westeros retornam à televisão na íntegra, em maratonas comemorativas no canal por assinatura HBO Signature. Os 73 episódios serão veiculados a partir das 10h deste sábado (17), se estendendo pelos próximos oito dias, cada um deles dedicados a uma das temporadas do programa.
Mas seria possível que, tal como o exército do Rei da Noite, GoT tenha encontrado vida após a morte? Uma década depois do público ser apresentado ao Trono de Ferro, GZH questionou pesquisadoras especialistas no caso de Game of Thrones sobre o legado que a série de David Benioff e D. B. Weiss deixou para o mundo.
Fãs unidos
Parte do legado de Game of Thrones pôde ser presenciado em plena Porto Alegre, em maio de 2019, quando pelo menos seis bares da Capital abriram as portas no domingo à noite para transmitir o último episódio da série ao vivo — como em uma partida de futebol. Em uma era em que novas tecnologias fragmentam cada vez mais as audiências, a produção foi capaz de demonstrar que o público ainda anseia por uma experiência coletiva:
— Game of Thrones, ao lançar episódios semanais, reforçou uma das principais características tradicionalmente vinculadas à TV, a sensação de copresença. Os espectadores eram convidados a assistir juntos e compartilhar teorias, ideias e destrinchar os últimos acontecimentos, além de tentar prever para onde a narrativa estava indo — aponta a pesquisadora Melina Meimaridis, doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação na Universidade Federal Fluminense (UFF).
Enquanto "amigos se reuniam em casa ou em bares para acompanhar as vidas dos personagens de Westeros", segundo Melina, um outro fenômeno igualmente poderoso se desenrolava nas redes sociais, onde fãs formavam grandes grupos para discutir os menores detalhes da produção e da história, muitas vezes durante a própria transmissão.
Fanáticos nas redes
A evolução desse fanatismo foi acompanhada de perto pela professora Valquíria Michela John, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), coordenadora da equipe brasileira do International Game of Thrones Project, uma iniciativa realizada para coletar e analisar as opiniões de milhares de pessoas sobre a série.
— GoT quebrou vários recordes, inclusive de produto mais pirateado, ano a ano. A mobilização e o engajamento dos fãs foi intensa, do início ao fim da série. Em sua última temporada, a cada semana os episódios colocaram a série no topo dos TTs (trending topics) do Twitter, em mais de uma ocasião mobilizando mais de 10 temas nos assuntos mais comentados — recorda ela.
Mais do que mobilização nas redes, Game of Thrones foi capaz de fazer parte da vida de milhões de pessoas por todo o planeta, como comenta Valquíria:
— Acompanhar a série reafirmou muitos aspectos dos estudos e da cultura de fãs, um ritual semanal, quase religioso, mobilizador de inúmeras pessoas em todo o mundo.
É em busca deste sentimento com o público que cada vez mais plataformas de streaming, como Disney+ e Amazon Prime Video, apostam em conteúdos semanais, frente ao binge-watching, o hábito de maratonar séries, proposto pela Netflix nos últimos anos.
Mundo em sintonia
Outra vítima do sucesso de Game of Thrones foi a questão da assincronia na distribuição de conteúdo entre os Estados Unidos e o Brasil, aponta Melina. Imagine se, naquele 19 de maio, os fãs brasileiros não pudessem assistir imediatamente ao grande final da produção, mas tivessem que esperar dias por uma transmissão nacional?
— Fãs brasileiros querem participar das conversas sobre as séries que estão sendo consumidas ao redor do mundo — defende a pesquisadora. — Reconhecendo que Game of Thrones foi uma das séries mais pirateadas da história, a HBO se esforçou para diminuir a pirataria por meio de transmissões simultâneas em diversos países.
Mesmo com as complicações inerentes a uma première mundial, a investida foi fundamental na jornada da série rumo ao trono da televisão, por colocar os fãs de diferentes países na mesma página e permitir que a comunidade online florescesse, tornando Game of Thrones um verdadeiro fenômeno mundial. E a companhia parece ter compreendido os benefícios, visto que os lançamentos desde então vêm mantendo o mesmo padrão de sincronia entre diversos países.
É um modelo que já é adotado pelas plataformas de streaming, cujos lançamentos originais tendem a ter estreias mundiais, e mesmo alguns canais da televisão paga, como o Star Channel. A revolução, no entanto, ainda não chegou à maioria destes canais — que podem demorar meses, em alguns casos, para retransmitir episódios de emissoras estrangeiras.
Rainhas e guerreiras
Uma faca de dois gumes é o legado que Game of Thrones deixou em relação à representação feminina. Se por um lado as mulheres finalmente puderam acompanhar uma gama de personagens complexas, a glorificação de experiências traumáticas não foi nada positiva.
— Nenhuma das mulheres conseguiu conquistar esse espaço na trama por reconhecimento ou por suas aptidões, mas sim através de uma série de violências, desde físicas a psicológicas — reflete Andréa Ortis, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Midiática da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Um caso emblemático ocorreu na oitava temporada, quando Sansa afirmou que "sem Mindinho, Ramsay e o resto, eu teria sido um Passarinho a vida toda", dando a entender que os inúmeros abusos que passou foram necessários para torná-la uma mulher forte.
Apesar de casos como este, a pesquisadora, que dedicou seu mestrado para estudar a representação feminina na série, defende o valor de personagens como Arya Stark e Daenerys Targaryen, que não se intimidam frente às regras impostas a elas:
— São mulheres e meninas que, mesmo fazendo parte de uma sociedade patriarcal, batem de frente com o núcleo masculino, não aceitando as regras e costumes e, muitas vezes, ditando suas próprias regras.
Épico e fantástico
Game of Thrones também deixou um legado único para George R.R. Martin, que transformou-se em uma espécie de rock star literário na última década.
No Brasil, por exemplo, o sucesso dele caminha de mãos dadas com a série: o livro A Guerra dos Tronos ganhou uma versão traduzida para o português brasileiro justamente em 2011, junto ao lançamento de Thrones, apesar de estar disponível nos EUA desde 1996. De lá para cá, os títulos de As Crônicas de Gelo e Fogo flutuaram pelas listas de livros mais vendidos junto ao calendário do programa da HBO, retornando ao ranking junto às novas temporadas.
É evidência, aliás, de que a obra foi capaz de subverter a lógica de uma adaptação e captar a atenção de um novo público. É o que aponta Lucia Collischonn, doutoranda em estudos de tradução na universidade de Warwick, na Inglaterra, que pesquisou as particularidades da adaptação dos livros de Martin às telas durante sua graduação na UFRGS.
— A ordem clássica e cronológica de que os livros vêm antes e criam espectadores para suas adaptações foi revertida no caso de GoT, principalmente porque a produção da HBO alcançou públicos muito mais abrangentes do que só a bolha nerd — explica Lucia. — Isso abriu caminho não somente para outras adaptações, como também para um boom, mesmo que em escala proporcional, de literatura de fantasia nacional.
Informalmente, o que se vê até hoje é uma corrida pelo "novo Game of Thrones". Nesta plataforma de notícias, por exemplo, a alcunha já foi dada a Westworld e Carnival Row; Cursed foi considerada uma opção para os "órfãos de GoT"; enquanto uma manchete destacava o fato de The Witcher estar sendo classificado como "melhor que Game of Thrones".
Considerando tudo que a série foi e ainda representa, contudo, é difícil imaginar que uma sucessora surgirá tão cedo.