Aos 85 anos, Woody Allen amarga a acusação de ter abusado sexualmente de sua filha adotiva, Dylan Farrow, em um escândalo que o tornou alvo dos movimentos feministas e o tirou da lista de queridinhos de Hollywood. O cineasta negou o abuso repetidas vezes ao longo de décadas e voltou a fazê-lo na estreia da nova temporada do Conversa com Bial, na madrugada desta terça-feira (9).
Durante a entrevista, ele falou principalmente sobre a pandemia do coronavírus e sua autobiografia. Muitas páginas do livro, intitulado Woody Allen — A Autobiografia, foram dedicadas ao caso de abuso, assunto do qual ele não conseguiu desviar totalmente no programa.
— Estava escrevendo a história da minha vida, e quando chegou a esse ponto, escrevi conforme aconteceu. Tentei ser o mais fiel possível, e se alguma coisa podia ser vista como ambivalente, tentei usar a perspectiva de outra pessoa. Citava psiquiatras, juízes, investigadores, todos os envolvidos, para que não parecesse que era eu dizendo algo. Queria apenas contar uma história sem que as pessoas achassem que, por ser a minha versão, sou uma pessoa maravilhosa e tal — afirmou a Pedro Bial.
A acusação de que Allen abusou de Dylan surgiu na década de 1990, durante seu processo de separação de Mia Farrow, atriz de muitos de seus filmes e com que dividiu a adoção de Dylan e Moses - eles também tiveram um filho biológico, Ronan, mas, quando já estavam separados e sem se falar, Mia começou a dizer que o pai de seu filho é o cantor Frank Sinatra. A denúncia foi investigada em 1992, mas considerada sem indício de suspeita, e teria sido motivada pelo envolvimento do cineasta com Soon-Yi, na época com 22 anos, adotada por Mia quando a atriz havia sido casada com o compositor André Previn.
Em todos os anos que se seguiram, Allen disse que a filha tinha sido manipulada pela mãe. O caso voltou à tona em 2014, quando Dylan, já adulta, escreveu uma carta aberta detalhando o episódio. Ela também foi apoiada por Ronan, que não conserva com Allen. Moses, por outro lado, reforçou o argumento do cineasta de que a mãe manipulava a irmã.
Boicote em Hollywood
A editora Hachette negou-se a publicar a autobiografia de Allen em apoio à onda de boicote que surgiu após a carta aberta de Dylan. Além disso, enquanto alguns atores passaram a dizer que se arrependiam de ter aceito um papel em seus filmes, outros começaram a afirmar que não trabalhariam com o cineasta com quem, no passado, todos queriam atuar.
— Sim, estou sendo boicotado, mas eles estão cometendo um erro. A Hachette devia ter publicado meu livro, mas havia pessoas na organização que eram contra. A mesma coisa com atores que falam que se arrependem ou que nunca trabalhariam comigo. O que posso dizer? Estão cometendo um erro. As pessoas cometem erros e esse é mais um deles.
Allen também falou sobre o #MeToo, o movimento feminista americano que ajudou a revelar os casos de abuso envolvendo o produtor Harvey Weinstein e que também teve repercussões para o próprio cineasta.
— Acho que os princípios básicos do #MeToo são bons, elas querem lutar contra a exploração injusta das mulheres por homens que podem explorá-las. Mas, como em todos os movimentos, às vezes a coisa perde o controle, erros são cometidos e pessoas inocentes sofrem. Isso acontece o tempo todo. Então acho que (o movimento) fez bem para as mulheres, a intenção delas (feministas) é ótima, só precisam ter cuidado ao fazerem isso para ter certeza de seus alvos, garantindo que o que estão fazendo é em benefício às mulheres e não injusto com os homens que elas acusam.
Ele não citou o próprio caso diretamente, mas deu um exemplo do que considera injusto:— Elas trouxeram a público homens que se aproveitaram muito de mulheres. Por outro lado, se um homem tem que se preocupar de entrar no escritório, falar que a uma mulher "Você está bonita hoje", e perder o emprego, isso não ajuda a elas nem à sociedade em geral. Sou a favor delas (feministas), desde que tenham certeza de seus alvos — completou.
Sobre Dylan e Ronan, disse que não os vê há muito tempo, cerca de 20 anos, mas gostaria de retomar o contato. — Fui tão afastado deles, porque não tinha permissão de vê-los, então não falo nem vejo os dois há, sei lá... uns 20 anos ou algo assim. Meu outro filho, Moses, ligou e queria restabelecer o relacionamento. Hoje somos muito próximos e ele é ótimo. Espero conseguir o mesmo um dia com eles.
Isolamento
A conversa com Pedro Bial também teve momentos de brincadeiras. O apresentador citou o comportamento pessimista e hipocondríaco de Allen, características que o cineasta explora amplamente em seus personagens - principalmente quando representa a si mesmo. Allen disse, no entanto, que o coronavírus não foi a grande notícia ruim que por tanto tempo esperou.
— Tive muita sorte, porque esse baque terrível e catastrófico nunca aconteceu. Eu tive meus pais a vida toda. Eu nunca sofri nenhum acidente, nunca estive no hospital... (...) Então esse baque nunca aconteceu. Ainda assim, ter medo desse baque teve um efeito terrível na minha vida, porque nunca consigo relaxar e aproveitar nada. Sempre acho que algo terrível vai acontecer ou cair em cima de mim.
Ele também falou sobre os cuidados necessários:
— Fiquei em casa, obedeci às instruções dos médicos, usei máscara quando saí, não aglomerei. Já tomei a primeira dose da vacina, porque tenho 85 anos. Você sabe... (o coronavírus) é um pesadelo, mas não é o baque que espero a qualquer minuto.
O isolamento causado pela pandemia, no entanto, o afastou das ruas de Nova York, principal cenário de suas filmes.
— Quando saio nas ruas, todos usam máscaras, o que é terrível. Gostamos de ver as pessoas e seus rostos, e eu também uso máscara, o que odeio, mas é muito importante. Geralmente, quando se sai para passear em Nova York, a cidade tem vida, todas as lojas ficam abertas, tem um milhão de pessoas lindas por todos os lados (...), tudo é fascinante, e é uma ótima cidade. Agora, quando saímos, está tudo morto, lojas fechadas, com tapumes, os restaurantes estão fechados.
Allen ainda falou sobre o Rio de Janeiro, afastando boatos de que havia planos para gravar um próximo filme na capital fluminense, admitiu sua paixão por Tom Jobim - cujo sucesso Desafinado aparece em Tudo Pode dar Certo - e sobre Machado de Assis, autor de um de seus cinco livros favoritos, Memórias Póstumas de Brás Cubas.
— Eu nunca tinha ouvido falar nele, não sou muito de ler, mas uma moça que eu não conhecia me mandou esse livro por correio. Achei que era mais um livro qualquer, comecei a ler e achei uma novela completamente encantadora. Então li alguns dos contos e outro livro dele, e ele era um gênio, um escritor maravilhoso.