Era uma das mais aguardadas autobiografias, afinal, Woody Allen firmou-se, desde a década de 1960, como um dos principais diretores e roteiristas do cinema americano, autor de comédias que traduzem com graça as principais angústias humanas. Mas Woody Allen — A Autobiografia, que a Globo Livros lançou nesta terça-feira (10) no Brasil, correu o risco de não ser publicada nos Estados Unidos — a editora Hachette já cuidava da obra quando desistiu de lançá-la, depois de um protesto de seus funcionários contra o lançamento. “Dispensaram o livro como se fosse um bloco radioativo de xenônio-135”, conta ele. Por fim, Apropos of Nothing, título original, saiu pela independente Arcade, que o lançou quase na surdina, no final de março.
O motivo não era editorial, pois Allen relembra sua trajetória com a mesma verve cômica que marca seus filmes e livros. Mas sim a acusação feita por Dylan, filha do cineasta com a atriz Mia Farrow, de abuso sexual, crime que teria acontecido em 1992, quando ela tinha sete anos — uma acusação que reiterou em 2018, mas Allen sempre desmentiu, e a denúncia não chegou a ser comprovada pelas investigações feitas sobre o caso.
Mesmo assim, o estrago estava feito, e Allen logo perdeu um contrato estimado em US$ 68 milhões com a Amazon, responsável pela distribuição de seus novos filmes. A comédia romântica Rifkin’s Festival, seu último longa, foi financiada por uma produtora espanhola e abriu o Festival de San Sebastián, em setembro. Se a Europa tornou-se novamente o refúgio cinematográfico para Allen, o furacão iniciado no mercado editorial americano foi suficiente para contaminar o provável sucesso que o livro teria em diversos países, onde a publicação foi protelada ou mesmo cancelada.
No Brasil, alguns editores não quiseram participar do leilão pelos direitos autorais, temendo uma negativa reação do público leitor. A definição, aliás, ocorreu depois de um esquema arriscado, com ofertas feitas às escuras, pois os participantes do leilão receberam uma vaga descrição do que seria o livro, sem acesso ao original, nem mesmo a um capítulo.
Uma das apostas da Globo Livros, que acabou ficando com os direitos no país, é que Allen apresentasse um outro ponto de vista. De fato, são várias as surpresas apresentadas na obra, na qual Allen traça um perfil honesto sobre si — mesmo que isso possa ser usado contra ele, como a insensibilidade ao tratar de mulheres.
Defesa
Allen não escapou da condenação moral a que foi submetido especialmente pelos americanos e ocupa parte considerável de sua autobiografia para se defender. Um dos principais alvos é a atriz Mia Farrow, com quem teve um filho biológico (Satchel, que agora se identifica como Ronan) e vários outros adotados. São momentos do livro em que a voz descontraída cede espaço para um ajuste de contas, o humor é atropelado pelo desabafo. Allen retrata Mia como uma mulher insensível no trato com os filhos, que eram adotados com a mesma emoção com que se compra um brinquedo novo.
Allen descreve maus-tratos praticados por Mia em diversos filhos, mas se concentra em Soon-Yi, garota sul-coreana que foi adotada pela atriz quando estava com sete anos e com quem Allen iniciou um relacionamento amoroso quando ela completou 21. Segundo o cineasta, a menina vivia feliz em um orfanato quando foi levada pela atriz. “Mia então a tirou desse ambiente com o qual ela havia se habituado e a obrigou a fazer uma turnê por outros orfanatos, onde buscava novos órfãos como alguém que passa pelas gôndolas de promoção numa livraria”, escreve Allen, que passa a enumerar uma série de situações constrangedoras a que Soon-Yi era submetida.
Mia descobriu que Allen estava se relacionando com Soon-Yi ao encontrar fotos polaroides eróticas da garota no apartamento do cineasta. “É claro que entendo o choque dela, sua consternação, raiva e tudo mais”, observa. “Foi a reação correta.” Depois disso, furiosa, Mia decidiu acusá-lo de ser molestador, o que se agravou quando surgiu a denúncia de Dylan.
Apesar da turbulenta vida privada, Woody Allen não deixou de fazer filmes, alguns figurando entre os melhores de sua carreira. Allen, aliás, revela uma sinceridade cortante quando se refere a si mesmo. A primeira surpresa surge quando conta que, quando jovem, era popular no colégio e praticante de vários esportes, especialmente o beisebol. Confessa que, até o fim do Ensino Médio, não gostava de ler — o rádio e os filmes eram mais empolgantes.
Hoje, próximo dos 85 anos (completa em 1º de dezembro), prefere escrever a filmar. Mudaria algo? “Não teria comprado o fatiador milagroso de vegetais que um cara anunciou na TV.” Algum legado? “Melhor que viver nos corações e nas mentes do público é viver no meu apartamento.”
WOODY ALLEN - A AUTOBIOGRAFIA
- Tradução de Santiago Nazarian
- Editora Globo (328 páginas, R$ 49,90)