Vale a pena ser honesto em um país onde todo mundo é desonesto? Com essa pergunta em mente, o dramaturgo Gilberto Braga se inspirou para escrever Vale Tudo, uma das novelas mais amadas da televisão brasileira. Impulsionado pela vilã Odete Roitman, em atuação antológica de Beatriz Segall, o folhetim foi exibido pela Globo de maio de 1988 a janeiro de 1989. Após reprises na TVs aberta e por assinatura, Vale Tudo chega nesta segunda-feira (20) ao Globoplay. Todos os capítulos serão liberados na íntegra, dando continuidade ao projeto da plataforma de streaming de relançar, a cada 15 dias, antigas novelas da Globo.
A trama de Vale Tudo acompanha Maria de Fátima (Gloria Pires), ambiciosa jovem que vende a única propriedade da família e foge para o Rio de Janeiro com o sonho de ser modelo. Raquel (Regina Duarte) vai atrás da filha golpista e acaba se apaixonando por Ivan (Antonio Fagundes), sobrevivendo da venda de sanduíches na praia.
Maria de Fátima fica deslumbrada com o mundo que descobre. Estimulada por César (Carlos Alberto Ricceli), garoto de programa com quem se envolve, ela decide seduzir Afonso Roitman (Cassio Gabus Mendes), filho da empresária Odete Roitman, para tentar se aproveitar da fortuna da família dona da Companhia Aérea TCA. A matriarca descobre o plano e promete dar o dinheiro desejado por Maria de Fátima se esta separar Ivan da própria mãe, para que ele se case com Heleninha (Renata Sorrah), filha de Odete.
Exibida logo após o processo de abertura política e em um Brasil sob uma nova constituição, Vale Tudo colocou junto aos elemento dramáticos do embate entre mãe e filha a discussão sobre ética e honestidade.
– Bem longe da teoria de Rousseau, que pregava que o homem em sua essência era bom e a sociedade que o corrompia, chegava-se cada vez mais à conclusão naquele período de que o famoso “jeitinho brasileiro” tinha vencido a guerra contra os valores éticos – explica Mauro Alencar, doutor em Teledramaturgia Brasileira e Latino-Americana pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de uma adaptação de Vale Tudo para um romance, publicado pela Editora Globo em 2010.
A investigação proposta por Gilberto Braga na novela, segundo Alencar, é “a melhor síntese dos contrastes sociais que constituem a formação do Brasil até hoje”. Inclusive, com maior intensidade do que o final da década de 1980, quando o folhetim foi exibido pela primeira vez.
- A diferença é que agora estamos mais alertas em um mundo altamente conectado por meio de inúmeras plataformas de comunicação. Isso traz à tona o mar de lama resultante de um sistema político e social sem ética e descontrolado – aponta o especialista.
Vilania
Não bastasse esse discussão moral, Vale Tudo ainda tem a presença de uma grande vilã. Ao longo dos 204 capítulos, Odete Roitman envenena maionese para matar desafetos, apropria-se de dinheiro ilegalmente e entra em conflitos com os filhos Heleninha e Afonso. A primeira é alcoólatra, algo imperdoável para a matriarca, enquanto Afonso nega o estilo de vida da família, preferindo viver no Brasil a se render ao luxo ostentado pela mãe em mansões no Exterior.
Odete Roitman é a magia absoluta da arte com a realidade. Ela impactava, mas é claro que ao examinarmos com mais precisão o seu ponto de vista, ficava difícil não concordar
MAURO ALENCAR
Pesquisador de teledramaturgia, autor de adaptação de 'Vale Tudo' para a literatura
Mauro Alencar aponta que Odete ia muito além disso. Ela expressava sua crítica “ao desleixo social desde os tempos da colonização”, em frases como "esse povo daqui não vai pra frente, é preguiçoso” e “o Brasil é um país de jecas”. Isso sem falar nos dizeres sobre a vida de classe alta, mostrando desprezo por pessoas mais pobres.
– A Odete é a magia absoluta da arte com a realidade. Ela impactava, mas é claro que ao examinarmos com mais precisão o seu ponto de vista, ficava difícil não concordar – aponta Alencar.
No capítulo 193, no dia 23 de dezembro de 1988, a personagem foi morta por três tiros por um autor oculto, levantando a curiosidade dos espectadores. No dia da exibição, a cena registrou 81 pontos no Ibope, com picos de 92. A grande revelação, 11 capítulos depois, elevou a média para 86 pontos. O Brasil parou para saber quem matou Odete Roitman.
— Bastou a primeira aparição de Odete no capítulo 28, em close, que mostrava apenas os lábios e o olhar numa voz anasalada e metálica para a atriz deixar registrada, em gestos e expressões, a sua marca no Olimpo da arte dramática – recorda Alencar, que define Beatriz Segall como a “interpretação perfeita” para a personagem.
Mulheres
Vale Tudo também retratou a homossexualidade quando o preconceito era muito maior que hoje em dia. O casal Laís (Cristina Prochaska) e Cecília (Lala Deheinzelin) alimentou a discussão sobre a legislação para relacionamentos LGBTs – algo inexistente na época.
— Observo que não apenas a questão dos direitos civis de homossexuais, mas também o preconceito que envolve tal relação ainda está entranhado em nossa sociedade – frisa Alencar.