Em quatro anos, a Lava-Jato condenou 160 pessoas a 2.384 anos, oito meses e 20 dias de cadeia. Os processos entrelaçam políticos, empresários, doleiros, lobistas, traficantes e cafetinas num esquema transnacional de corrupção, lavagem de dinheiro, enriquecimento ilícito e financiamento ilegal de campanhas eleitorais. Na esteira do escândalo, Dilma Rousseff caiu, Michel Temer é alvo de quatro inquéritos, dois deles com denúncia, e Lula está prestes a ser preso.
Subsídios não faltam, portanto, para o diretor José Padilha construir a teia narrativa de O Mecanismo, série que a Netflix exibe a partir de sexta-feira (23). Em oito episódios a produção dramatiza a investigação que expôs a bandalheira institucionalizada no país.
Roteiro tenta corrigir falhas presentes no livro
Para contar a história, Padilha recua 15 anos. É 2003 e, revirando o lixo do doleiro Roberto Ibrahim (Enrique Díaz, em personagem inspirado em Alberto Youssef, já que todos os nomes originais foram trocados), o delegado da Polícia Federativa Marco Ruffo (Selton Mello) descobre uma operação bilionária de evasão de divisas. Ibrahim é preso, mas acaba solto pelo juiz Paulo Rigo/Sergio Moro após acordo de delação premiada. Revoltado, Ruffo quebra a sala de audiências e perde o cargo. A trama salta para 2013, e a delegada Verena Cardoni (Caroline Abras), pupila de Ruffo, esbarra no doleiro ao investigar uma casa de câmbio em Brasília suspeita de lavar dinheiro para o tráfico. Verena vincula o esquema à estatal Petrobrasil e, para usar a metáfora atribuída ao ministro do Supremo Tribunal Federal Teori Zavaski, a cada pena puxada vem uma galinha.
Baseada no livro Lava Jato – O Juiz Sergio Moro e os Bastidores da Operação Que Abalou o Brasil, do jornalista Vladimir Neto, O Mecanismo tem capítulos assinados por Padilha, Daniel Rezende (Bingo: O Rei das Manhãs) e Marcos Prado (Estamira). O trio responsável pelo díptico arrasa-quarteirão Tropa de Elite capricha na produção e na seleção do elenco, mas o problema está no texto, panfletário e em muitos momentos inverossímil.
A narração em off, bengala recorrente na obra de Padilha, entedia o espectador com analogias simplórias ("a corrupção é um câncer") e desabafos quixotescos ("no começo, eu não vi a doença por inteiro"). Enrique Díaz encanta no papel do doleiro cínico e debochado. Alertado no camburão por Ruffo de que vai ficar tanto tempo preso que "quando sair vai precisar de fraldas para mijar", tripudia: "Meu advogado é o ministro da Justiça". O mesmo não se pode dizer de Selton Mello, cuja interpretação maneirista e voz afetada por vezes o torna enfadonho em cena.
Noves fora as distorções factuais forçadas por conveniência narrativa – Youssef foi preso no Maranhão e portava uma mala de dinheiro supostamente destinada a Roseana Sarney, mas na série é detido em Brasília e a mala vai para a marqueteira de Dilma, Mônica Moura –, o roteiro tenta corrigir alguns pecados do livro, sobretudo ao evitar a canonização de Moro e dos procuradores da República. Há mais nuanças e menos discurso oficialesco, porém falta suspense e incidentes provocadores que obriguem o espectador a engatilhar um capítulo atrás do outro.
Como a Netflix antecipou apenas os três primeiros episódios à imprensa, O Mecanismo tem potencial para surpreender na sequência final e matéria-prima de sobra para transformar em entretenimento de qualidade o retrato exasperante do Brasil contemporâneo exibido todos os dias nos telejornais. Nos capítulos iniciais, Padilha mostra seu distintivo. Falta o mandado judicial que nos prenda ao sofá.