Diretor de Tropa de Elite, José Padilha gosta de reproduzir na tela as mazelas sociais, incluindo seus personagens. Fez isso com a história da polícia corrupta no Rio e, em Narcos, com o traficante mais procurado da América Latina. Sua última empreitada pelos meandros do poder, seja ele oficial ou criminoso, foi contar a operação policial mais polêmica e midiatizada do Brasil: a Lava-Jato.
Produzida especialmente para a Netflix, O Mecanismo estreia nesta sexta-feira (23) na plataforma. O título é uma constatação do próprio diretor com o que ocorre nos bastidores da política brasileira.
— O mecanismo funciona desde os primórdios da nossa democracia — avalia Padilha.
Confira, abaixo, trechos da entrevista.
Aponta-se o seriado hoje como o formato audiovisual por excelência do nosso tempo. Isso pesou na sua decisão de tratar da Lava-Jato em uma série?
Sim. Hoje em dia, a TV americana talvez tenha até mais qualidade do que o cinema. As séries inovam, correm riscos. Se um filme der errado, o estúdio tem prejuízo. A Netflix e a Amazon não ganham dinheiro com a venda de um filme, mas com a assinatura mensal. Se eles fizerem 20 séries e três derem certo, mantêm os assinantes. A receita, no curto prazo, não está amarrada à qualidade da série. Então dá para arriscar, experimentar muito mais. Eu fiz O Mecanismo na Netflix dos EUA por vários motivos. Primeiro: se eu fizesse em qualquer canal de TV brasileiro, as pessoas retratadas na série iam me acusar de ter um viés partidário. A mídia do Brasil está inserida na política, como está nos EUA também. Mas a Netflix é estrangeira, não está inserida na política brasileira. Então é muito melhor do ponto de vista da isenção. Segundo: a Lava-Jato é uma história que não se conta em duas horas. Você pode fazer um filme sobre um pedacinho da Lava-Jato, mas ela, em si, é impossível. Então tinha que ser uma série.
Por que você optou por fazer uma ficção baseada na Lava-Jato enquanto a operação ainda está se desdobrando?
O que eu estou tratando na primeira temporada já passou. Estou atrás da realidade, mas coladinho nela. Acho que é melhor e gera mais debate. E estamos tendo muito cuidado em olhar fatos e documentos. Existe a espuma, o debate motivado ideologicamente, a disputa de poder. Um cara defende o Temer, o outro, o Aécio, o outro, o Lula. Chamo isso de espuma porque, na verdade, são todos culpados. Todos. 100%. Quando você olha os fatos, esquece a ideologia, não há dúvida de que, desde o primeiro governo democrático, do Sarney até hoje, o processo é o mesmo. O mecanismo funciona desde os primórdios da nossa democracia. Quem se elege pega o bastão da corrupção e estrutura o processo mediante a ocupação de cargos públicos, acordos no Congresso etc. Era isso que eu queria mostrar.
A intervenção militar no Rio poderia inspirar um Tropa de Elite 3?
Eu já falei o que eu queria falar sobre segurança pública com os dois Tropa de Elite. Sabe por que a intervenção militar não vai resolver? Se você montar uma empresa de computadores você não tem que escolher pessoas capazes de exercer suas funções? Para qualquer organização, a escolha das pessoas e o treinamento é fundamental. A polícia do Rio vai executar qualquer plano? Não existe plano de segurança sem a reforma total da polícia. A intervenção militar vai reformar a polícia? Não vai reformar nada. É obvio que não vai resolver. Eu tenho até dificuldade de conversar com quem acha que vai resolver.
No início de Tropa 2, Nascimento (Wagner Moura) sofre um atentado. Há alguma analogia possível com o caso da vereadora Marielle Franco?
Não sei o que aconteceu com a Marielle. No caso de Tropa 2, são policiais militares tentando matar um outro policial que vai denunciá-los. Eu não vou dizer que foram policiais que fizeram isso com a Marielle. O que eu posso dizer é que foi uma tragédia. Posso dizer que, no Rio de Janeiro, existe uma tragédia cotidiana e que pessoas morrem todos os dias assassinadas por policiais, traficantes e assaltantes. Num nível inacreditável, inaceitável. Isso acontece desde o sequestro do Ônibus 174 (2000) com pequenas oscilações. E no meio dessas matanças de vez em quando tem coisas simbólicas. O massacre da Candelária (1993), a morte de Tim Lopes (2002), Sandro Rosa do Nascimento (2000). E acabou de acontecer com Marielle. O Rio caminha de morte simbólica em morte simbólica. Enquanto isso, 300 mil anônimos morrendo e nada é feito. Fernando Henrique não fez porcaria nenhuma. Lula também não fez nada. Dizem que os dois são humanistas. Não são humanistas, são políticos profissionais. operadores do mecanismo.
Sem o financiamento privado das campanhas, “o mecanismo” vai se adaptar?
O mecanismo está sacudido. É difícil alguém chegar agora para um empreiteiro e propor um esquema de corrupção do tamanho do que a Odebrecht participou. A gente está em um momento de transição, mas os que foram eleitos com a corrupção ainda controlam os grandes partidos. Os elementos para desmontar o mecanismo estão aí. A questão é se o Judiciário vai permitir que isso aconteça.