Ao encerrarmos a entrevista a seguir, realizada em uma longa troca de mensagens por escrito nos últimos dias, o escritor, cineasta e roteirista Tabajara Ruas perguntou se não havia sido “seco demais” nas respostas. É que “cada frase, para mim, é um tormento”, ele justificou.
Patrono da 69ª Feira do Livro de Porto Alegre, Tabajara tem 81 anos e uma série de livros importantes publicados, com destaque para os romances históricos – que ele passou filmar e roteirizar a partir de Netto Perde sua Alma (2001), que codigiriu com Beto Souza. Nos últimos anos, sua atuação parece cada vez mais diversa – pela natureza dos livros, roteiros e filmes com os quais se envolve e, também, pela quantidade de projetos anunciados. O que contraria o trecho final da conversa, quando justifica por que escolheu a despedida como tema do longa-metragem Perseguição e Cerco a Juvêncio Gutierrez, a ser lançado em 2024.
A seguir, ele responde sobre esses novos projetos, hábitos de leitura, novos autores, Feira do Livro e sua infância em Uruguaiana.
Qual a sensação de ser o patrono e, consequentemente, a referência desta edição de um evento tão tradicional em um momento tão importante para o livro e a literatura, o que inclui uma transformação do mercado (com o crescimento dos e-books e do comércio virtual) e, com ela, mudanças nas práticas de leitura das pessoas?
A sensação de ser nomeado patrono da Feira é naturalmente agradável, principalmente a reação das pessoas. Já a transformação do mercado em relação ao livro é algo para ser observado com calma. Mudanças, de modo geral, são coisas boas. O crescimento dos e-books e do comércio virtual e a mudança nas práticas de leitura devem ser vistos como avanço, que é o que se espera das mudanças.
As dificuldades de financiamento decorrentes da não aprovação da Feira para receber recursos via LIC-RS foram respondidas pela comunidade de modo contundente, como descreveu o presidente da Câmara do Livro em artigo publicado em GZH e no caderno DOC de 21 e 22/10. Como o senhor viu o episódio e como dimensiona a resposta da sociedade pensando no futuro da Feira e de eventos desse tipo?
Vejo a Feira consolidada. Acontecimentos como o deste ano serão deixados de lado, ficarão para trás. A Feira respondeu bem a isso. O título do artigo de Maximiliano Ledur, Uma Vitória de Porto Alegre, deixa as coisas bem claras. A Feira do Livro, o Festival de Cinema de Gramado, o Acampamento Farroupilha e ocasiões similares são conquistas da cidadania. Reconhecer os méritos do Acampamento, por exemplo, não é coisa só de bombachudos, mas de quem sabe reconhecer as diferenças de cada região. Basta ver o que falam os visitantes desses eventos.
O senhor tem 81 anos e é um leitor dedicado, além de consumidor de outros produtos culturais que passaram por grandes transformações nos últimos anos (o streaming mudando a forma como vemos filmes e séries, por exemplo). Mudou algo em seus hábitos? Lê e-books, vê mais séries do que filmes, algo assim?
Continuo um consumidor de cultura. Hoje vejo mais séries do que filmes. Essas inovações atingem toda a produção cultural, de várias maneiras. Não leio e-books, mas gosto de acompanhar séries. Há uma produção muito grande, e elas vêm com variadas marcas de renovação da linguagem. Leio tudo o que me cai nas mãos.
Por que mais séries do que filmes? É uma opção pelo formato ou simplesmente é uma questão de acesso?
Envolve as duas questões, é tanto pelo hábito do consumo quanto uma escolha estética. Sempre busco a qualidade, mas gosto de acompanhar coisas populares. Não acredito que Game of Thrones seja uma obra-prima de cabo a rabo, mas naquela enxurrada de questões que essa série apresenta sempre é bom acompanhar algum ator, alguma atriz, algum ângulo inovador na narrativa.
Algo em específico da produção mais recente tem lhe chamado a atenção na literatura ou no cinema?
Gostaria de indicar o último livro do Luz Antônio de Assis Brasil, Leopold, sempre inovador. E os novos gaúchos, Boca Migotto, Rogério Ferrari. Convém lembrar as mulheres, sem dúvida: Hilda Simões Lopes, Letícia Wierzchowski, Lélia Almeida, Cíntia Moscovich. No cinema, Kleber Mendonça Filho. Vale acompanhar a produção dessas pessoas.
Vejo a Feira consolidada. Acontecimentos como o deste ano (dificuldades de financiamento após negativa junto à LIC-RS) serão deixados de lado, ficarão para trás. A Feira respondeu bem a isso. A Feira do Livro, o Festival de Cinema de Gramado, o Acampamento Farroupilha e ocasiões similares são conquistas da cidadania.
O senhor tem uma atuação múltipla, no cinema e na literatura, produzindo vários gêneros (até um filme de terror está roteirizando, segundo publicou GZH em 2022), mas é muito conhecido pelos grandes romances históricos. A impressão que tenho é de que as grandes narrativas literárias seguem seduzindo o público, especialmente os livros produzidos em série que permitem o aprofundamento dos personagens e do universo retratado (de fantasia, inclusive), mas tem sido bem mais usual vermos romances menores, de fôlego curto, mais próximos do gênero novela. Se o senhor concorda com essa observação, o que acredita que tenha acontecido com o mercado e com o leitor para a configuração desse cenário?
O filme de terror, que se chama Edifício Bonfim, roteirizado por Christopher Kastensmidt, Duda Falcão, Cezar Alcazar e eu, dirigido por Ligia Walper e Tomás Walper Ruas, está em fase de finalização e deve estar nas salas de cinema no próximo ano. Sua impressão de que as grandes narrativas literárias seguem seduzindo parte do público me parece correta. Se as produções se tornam menores é por atenção aos anseios do público. Uma questão de mercado. E mercado e leitor, muitas vezes, avançam na mesma direção. As tecnologias permitem evoluir, experimentar. Acho que isso está acontecendo. Mas a arte não depende de formas ou datas, nem de aparelhos supermodernos.
Mas há também, muito comumente, e não é de hoje, um receio com as tecnologias. Hoje se fala, por exemplo, em roteiros escritos com inteligência artificial. Como vê essa evolução em particular? Deve-se temê-la ou aproveitá-la, de alguma forma?
Se a interferência não for obra humana não convém levá-la à sério. O receio parece adequado nesse aspecto. Até porque não temos ainda uma obra que se apresente como totalmente não humana.
O senhor tem direcionado boa parte do seu trabalho recente ao audiovisual. Diante disso, podemos esperar muitos novos grandes romances históricos do Tabajara Ruas ou devemos nos acostumar a ver com mais frequência roteiros e filmes de Tabajara Ruas?
Meu novo livro é um “grande romance histórico”, Você Sabe de Onde Eu Venho, publicado em capítulos na Zero Hora há alguns anos. Será a narrativa da batalha brasileira pelo Monte Castelo, na Itália, na Segunda Guerra Mundial. Poucos sabemos sobre a atuação do Brasil nesse conflito, e esse livro esclarece algumas coisas. Em todo caso, podemos esperar mais um novo terror da Walper Ruas nas telas, minha novela O Fascínio, com Werner Schunemann. Estamos trabalhando nisso.
À época da publicação de Você Sabe de Onde Eu Venho em ZH (em 50 capítulos, um por semana, sempre no caderno Cultura, antecessor do DOC, ao longo do ano de 2012), o senhor chegou a afirmar que a pesquisa sobre a participação brasileira na Segunda Guerra alterou sua percepção do episódio, citando que a ação havia sido maior do que imaginava. É isso mesmo?
O conceito de “maior” é subjetivo. Só quem esteve no teatro das atrocidades pode dar uma referência sobre o tamanho real da catástrofe. Entrevistei aqui mesmo em Porto Alegre veteranos que lá estiveram e sempre afirmaram que a tomada do Monte Castelo mudaria a face da guerra na Europa. E isso de fato aconteceu. Quando tomaram a montanha, desceram para a planície do Pó onde o Brasil conquistou a sua “maior” vitória, em número de prisioneiros e mortos, na cidade de Montese, e logo a seguir Fornovo di Taro, onde cercaram duas divisões e aprisionaram dois generais. O caminho para Berlim estava aberto. Entretanto, as maiores batalhas aconteceram na Rússia. Só no cerco de Leningrado, numa única batalha, morreram milhões de combatentes.
Sua literatura sempre foi rica em imagens e diálogos, aproximando-se do audiovisual. Por favor, fale sobre a transição entre a atividade de escritor e as de diretor e roteirista.
Você lembra do Corisco, aquele cangaceiro do Glauber Rocha, que tinha duas cabeças, uma por dentro a outra por fora? Pois é, acho que escritor e diretor de cinema nasceram juntos. Minha linguagem literária é irmã da cinematográfica, e não se separam. Minha escrita nasceu quando escutei as primeiras histórias, na longínqua infância, lidas por minha mãe, Dona Irma, e meu pai, seu Napoleão, nos degraus de nossa casa diante do Rio Uruguai, em Uruguaiana.
Que histórias Dona Irma e Seu Napoleão liam para o senhor na infância?
Liam de tudo para os cinco filhos. Eu, particularmente, recordo O Três Porquinhos Pobres, ou O Elefante Basílio, obras do Erico Verissimo. O primeiro filme a que assisti foi uma fantasia delirante, Mogli, o Menino Lobo (1942), do Zoltan Korda, com atores.
Em sua produção ficcional, o senhor abordou diversos cenários importantes do ponto de vista da formação e da identidade local e nacional, como a Guerra dos Farrapos e a ditadura civil-militar brasileira. Hoje a produção ficcional que busca reflexões identitárias e culturais parece-me muito direcionada à micropolítica, à política do cotidiano e às questões envolvendo as minorias, estas últimas muito menos abordadas em décadas anteriores no Brasil. Como o senhor vê esse cenário?
Vejo como evolução. Neste novo Brasil em dolorosa formação, as minorias firmam o pé na porta e clamam por atenção. Atenção para os sem-terra, os sem-teto, os idosos, os gays, os trans e todos os que lutam pela afirmação de sua identidade e orgulho.
Por que só nos últimos anos as minorias firmaram o pé na porta? E por que a literatura abordou mais comedidamente seus anseios em décadas passadas, na sua opinião?
A humanidade tem seu ritmo próprio, e as coisas não andam todas ao mesmo tempo. No nosso caso, creio que interfere a “vontade política”, seja lá o que isso for.
Como alguém que teve de viver no exílio durante a ditadura e depois pesquisou o período e escreveu sobre ele (no celebrado romance O Amor de Pedro por João), como o senhor acredita que a sociedade brasileira lida com ele hoje? Como sociedade discutimos muito o período, vimos obras de arte nas mais diversas linguagens abordarem essa discussão, mas o apelo do autoritarismo parece seguir em parte das pessoas.
Acredito que a sociedade brasileira lida hoje com o período da ditadura com amnésia. Ou sonhando com paraísos fiscais... Ou sei lá. Somos autoritários porque fomos preparados para tal. Nas igrejas, nas escolas, no esporte, na arte. Precisamos mudar isso, e com toda urgência. Educação em massa. Como o Brizola queria, como o Lula quer.
Pesquisadores que estudam o autoritarismo brasileiro costumam apontar a desigualdade e as tensões de classe, muitas delas escamoteadas, como propulsoras dessa característica nacional. Só a educação resolveria mesmo? O que o senhor acha?
Nenhuma das graves mazelas brasileiras se resolveria com um estalar de dedos. São questões graves e profundas, que precisam de tempo, cautela, aproximação. O caso dos milicianos, por exemplo. Educação sim, e tempo, muito tempo. Quanto mais educação, melhor.
Quais são seus próximos projetos, além do longa-metragem Perseguição e Cerco a Juvêncio Gutierrez? E como será o lançamento desse filme, e de que forma ele se apresenta na sequência de seus dramas históricos anteriores (Netto Perde Sua Alma, Netto e o Domador de Cavalos, Os Senhores da Guerra e A Cabeça de Gumercindo Saraiva)?
Perseguição e Cerco a Juvêncio Gutierrez se aproxima dos filmes anteriores no seu caráter de pesquisar nosso território e sua identidade. É um filme da fronteira, vista pelos olhos de um adolescente, na crise existencial do rito de passagem para a idade adulta. Ele espera seu tio, interpretado pelo imponente Murilo Rosa, que vem com um revólver carregado no bolso da capa. Mas, de certa maneira, esse filme é uma espécie de adeus. Adeus à infância, às ilusões, às cavalhadas, às grandes paisagens, aos filmes com homens de faca na bota. Um adeus, enfim.
Por que trabalhar neste momento em um filme que “é uma espécie de adeus”? O que lhe fez buscar essa temática e esse tipo de reflexão hoje, no contexto em que vivemos?
Porque tenho 81 anos. Está na hora de começar a dar adeus. Quanto tempo o senhor acha que ainda tenho? Com sorte terminarei o filme que estou fazendo.
Frase dramática, típica de um fronteiriço. Ter nascido e sido criado na fronteira marca a personalidade e a sua trajetória?
Acho que marca ambos. Minha personalidade e minha trajetória. A fronteira se impõe ao homem. Somos todos casos de geopolítica.