Compositor, jornalista, produtor musical e escritor, Nelson Motta testemunhou e ajudou a escrever momentos marcantes da música nacional junto a grandes artistas – que tratou de narrar em um de seus vários livros, Noites Tropicais. A obra, que se tornou um clássico da história da música brasileira, foi relançada no ano passado em uma versão atualizada e ampliada, com três novos capítulos, para celebrar os 20 anos de lançamento. Ele o autografa neste sábado (11/11), às 18h, na 69ª Feira do Livro de Porto Alegre, e participa ainda do bate-papo De Lupicínio Rodrigues aos Anos de Ouro do Nosso Cenário Musical, às 16h, ao lado do também jornalista, músico e escritor Arthur de Faria. Nesta entrevista, Motta fala sobre a festa literária, aponta os talentos que estão despontando no cenário nacional, tece elogios a Anitta, opina a respeito das novas plataformas de streaming e reflete sobre as letras atuais da música popular brasileira.
Do que o senhor mais sente falta dos “anos de ouro” do nosso cenário musical?
Não sinto falta de nada, porque vivi intensamente, até a última gota. Nos anos 1980, por exemplo, eu já tinha 40 anos. Na verdade, a época de ouro se estende, vem desde antes e chega até os anos 1990, um período que as pessoas desprezavam na época, mas que tinha Marisa Monte, Cássia Eller, Adriana Calcanhotto, Planet Hemp, O Rappa, muita gente boa demais. Mas não deixou saudade. Até porque essa geração de ouro, que tem Chico, Caetano e Gil – e que é a minha geração –, nunca parou de produzir. No ano passado, neste ano, tem disco novo, tem turnê mundial desses nomes. Está todo mundo produzindo bastante. Então, as gerações foram se sobrepondo, e eu digo isso: a música brasileira é como uma grande lasanha. Todas essas camadas de épocas, de estilos, tudo isso vai se somando. E, quando você corta a lasanha, vem um pouco de cada uma dessas fatias. Essa é a minha teoria da lasanha da música popular brasileira. O que acho é que a lasanha está cada vez mais gostosa, porque vai tendo cada vez mais camadas, sem que as camadas anteriores sejam esquecidas.
O senhor tem vindo mais a Porto Alegre agora, por causa da sua namorada, a jornalista Pati Pontalti, certo?
Sim, bastante. Sempre gostei muito de Porto Alegre.
Como será, para o senhor, participar da Feira do Livro, um evento tão tradicional na cidade?
É uma oportunidade de rever meus amigos gaúchos, terra de grandes escritores, que continuam ativos. Vai do (Luis Fernando) Verissimo ao Peninha (Eduardo Bueno). E tem as autoras, a Claudia Tajes é minha amicíssima, acompanho a carreira dela. Morgana Kretzmann, mulher do Paulo Scott, que também é amigo meu, grande escritor também, é muito boa. Porto Alegre, especialmente, tem uma vida literária própria, tem a L&PM, tem editoras locais, tem um movimento grande. Parece-me que é a cidade que mais lê no Brasil, eu tenho essa impressão, porque todo mundo entende literatura, todo mundo está lançando um livro, e as pessoas sabem das coisas que estão rolando. É diferente de outras capitais. E muitas das melhores lembranças de lançamentos meus foram na Feira do Livro de Porto Alegre. Eu amo a Feira, porque ela é no meio da cidade. Fica ali, ela faz parte da rotina dos porto-alegrenses durante duas, três semanas. É uma loucura. Todo mundo, para se movimentar pelo Centro, tem de passar pela Feira. Ela está viva, ali. Eu não vou à Bienal do Livro em São Paulo, com 10 mil expositores. Tenho horror dessa. Horror, horror máximo.
O evento do qual o senhor participará vai abordar também Lupicínio Rodrigues. Quais o senhor considera que foram as maiores contribuições de Lupi para a cultura e identidade nacionais?
Lupicínio é um dos meus autores favoritos. Sempre foi. A estética do ódio, da vingança, ele é único nisso. É o grande mestre. E, além de tudo, o fato de ele ser gaúcho, de ser um sambista gaúcho, de ser preto no Rio Grande do Sul, isso tudo dá a ele um caráter especial, único. Além de ser um melodista fabuloso, era um letrista incrível, que transformava a vida dele em canções. E ele botava para fora o que muita gente não tem coragem de expor. A raiva, a vingança, o ódio, o ressentimento, a estética do rancor. Isso tudo acaba sendo muito bonito artisticamente, como criação artística. O sentimento pode ser feio, não está em julgamento, mas o resultado artístico que ele consegue alcançar é extraordinário. Ele criou grandes clássicos românticos: Felicidade, Cadeira Vazia, Esses Moços. O conjunto da obra é fantástico. Ele criou um modelo de samba-canção. E é engraçado, também, dentro dessas peculiaridades, ele ter estourado nacionalmente com um sambão carioca, Se Acaso Você Chegasse, com a Elza Soares. Lembro-me perfeitamente do impacto que foi o lançamento. Foi um hit nacional monstruoso. Já é uma história estranha, o cara falando para o amigo: “Ó, eu estou com a sua mulher agora”. Essas temáticas sombrias incríveis do Lupicínio... E, coitado, acho que era um cara que sofria muito e compunha para sair do sofrimento. É uma grande tática você compor, fazer música. Porque acontece, a dor passa, o ressentimento, o ódio, tudo passa, mas a obra fica. Lupicínio transformou o sofrimento em arte.
Todo mundo tem saudade da sua juventude. As pessoas têm saudade de quando elas eram modernas. E aí se deixam levar por esse sentimento. É um erro. Viva a sua época! Você não vai ter esse mesmo sentimento nunca mais. Eu não me sinto antigo. Estou velho, tenho 79 anos, é biológico. Mas ficar antigo é cultural. Não é biológico.
E hoje, quais são os destaques do cenário musical nacional?
Tim Bernardes, 31 anos, compositor à altura de qualquer um dos grandes, letrista, multi-instrumentista. Chiquinho Brown, filho do Carlinhos Brown e neto do Chico Buarque. O garoto é um monstro, um fenômeno. Muita gente boa está florescendo, é uma loucura. Rubel é muito bom. Muito, muito bom. Tem estilo, elegância. Silva é maravilhoso. E Emicida. Emicida está à altura dos grandes, já, com 38 anos. É top do top. Por tudo: música, letra, atitude, persona pública. Sou fã. Como você vê, tem muita gente boa. Vou contar uma história. Dou muitas palestras. E, no fim, tem perguntas. Aí sempre tem alguém que fala assim: “Ah, você não acha que os anos dourados da música brasileira…”, aí tu olha quem está perguntando e é um cara de mais de 60 anos. Ou o cara que vem: “O rock brasileiro acabou nos anos 1980, hoje só tem porcaria”. Olha o cara: tem mais de 50. É sempre assim. Já ouvi: “Não tem mais música tão boa quanto os anos 1990, uma nova Marisa Monte”. Eu respondo sempre a mesma coisa: todo mundo tem saudade da sua juventude, isso é normal. Nesse caso, a pessoa está com saudade do tempo em que ela era moderna também. As pessoas têm saudade de quando elas eram modernas. E aí se deixam levar por esse sentimento. É um erro. Viva a sua época! Você não vai ter esse mesmo sentimento nunca mais. Eu não me sinto antigo. Estou velho, tenho 79 anos, é biológico. Mas ficar antigo é cultural. Não é biológico. Vejo caras da minha idade e caras muito mais novos do que eu que podiam ser meus avôs em pensamento.
Hoje, com as novas plataformas, há um acesso facilitado tanto à reprodução de músicas quanto à divulgação. Algumas pessoas tendem a dizer que a qualidade decaiu, porque, em alguns casos, não há uma curadoria de gravadoras e produtores. Como o senhor vê esse momento?
Para mim, a qualidade só pode ter crescido. Porque as pessoas não esquecem de fazer música. Sempre está nascendo gente talentosa. Isso de decair não existe. O que ocorreu com as plataformas foi uma absoluta democratização da produção musical. Todo mundo pode fazer seu disco em um estudiozinho, no banheiro da sua casa. Qualquer moleque tem mais recursos em casa do que o estúdio em que eu gravava com a Elis Regina, em 1969, por exemplo. Muito mais recursos técnicos. Então, teoricamente, cada um pode fazer o seu disco. Se tiver talento suficiente, pode tocar e gravar todos os instrumentos, como fazem o Chiquinho Brown, o Ed Motta, colocar nas plataformas, promover na internet, nos meios que tiver. O problema é que, como todo mundo pode fazer isso, vira uma competição alucinante. Neste momento em que nós estamos conversando, já subiram quantas músicas? Dezenas. Antigamente a produção era muito menor. Então, era mais fácil escolher. Dava para ouvir tudo o que foi lançado. Hoje não existe mais isso. Era mais fácil você distinguir as pérolas do pedregulho. Hoje há muitas coisas boas que não conheço. A internet desencadeia um processo de busca de atenção. Essa é uma questão. Chamar a atenção das pessoas para a sua música é muito difícil atualmente. Nunca foi tão fácil fazer música, mas nunca foi tão difícil fazer sucesso. Justamente porque nunca foi tão fácil você mesmo produzir as suas músicas. É o outro lado da questão. Tem gente desconhecida que tem milhões de ouvintes no Spotify. E são tantos os gêneros musicais, as tribos… É cada vez mais difícil achar a qualidade. Não é que ela não exista. Se disser que a qualidade não existe, que a música piorou... Não pode. Está errado. É como dizer que os brasileiros não sabem mais jogar bola. Sabemos fazer música, somos um povo musical, que tem talento, por que não continuar a fazer agora que é mais fácil? Não tem censura, não tem obrigação nenhuma com ninguém, não precisa de autorização, não precisa de gravadora, de patrocinador, de nada. O cara pode fazer tudo sozinho. Nós estamos vivendo essa era. E a busca da originalidade no meio disso é dificílima, é duríssima.
O que ocorreu com as plataformas foi uma absoluta democratização da produção musical. Qualquer moleque tem mais recursos em casa do que o estúdio em que eu gravava com a Elis Regina em 1969. Mas a busca da originalidade no meio disso é dificílima.
O senhor já defendeu a Anitta. Como avalia o trabalho dela, que hoje é uma das principais representantes da música e da cultura do Brasil no Exterior?
Eu fui talvez o primeiro "crítico musical sério", digamos, que falou da Anitta. Nunca fui tão esculhambado na minha vida, nunca, nem por causa de política, nem nada. Uma crônica que eu escrevi falando e dando à Anitta o que ela merece. Já lá atrás, as pessoas diziam: "Pô, traidor da música brasileira, sigo você há 50 anos, parei de seguir, canalha, oportunista, quanto você está levando dela?", coisas desse nível. Eu fiquei impressionado, o ódio que as pessoas têm de uma simples cantora. Uma grande artista, uma imensa artista, eu vi desde o começo isso, todo o processo. A Anitta botou o corpo que quis, a cara que quis, às custas dela. Basta ver o que a Anitta virou, ela fala tudo que é língua, ela está à vontade, ela está no Grammy, ela dá entrevista. É a primeira grande artista internacional brasileira, ninguém chegou nem próximo das músicas, dos ouvintes, do sucesso. João Gilberto, a lenda, mas massa mesmo, só a Anitta. A Anitta pode meio que cantar o que ela quiser, você viu a gravação dela com o Caetano, samba-canção, lindo, parece ali coisas dos anos 1950. Anitta podia ser uma grande cantora de bossa-nova, se ela tivesse vivido na época ou se resolvesse. Aliás, ela gravou uma bossa-nova eletro com o Poo Bear, Will I See You, muito linda. Eu sou muito amigo dela também, me tornei amigo dela porque eu admiro demais essa mulher. Eu nunca vi nada parecido. A Anitta transcendeu a música, é o que chamava formadora de opinião, é uma influencer fodida também hoje. Ela se expõe, ela é corajosa, inteligente para caralho, como essa mulher é inteligente, esperta, vem de fábrica. Você já viu ela de perto? É uma tiquinha de um metro e meio, não é nada, aí vem aquele monstro. O poder que ela tem mesmo, o poder de influenciar eleição, de críticas de comportamento. Frequentemente a Anitta está dando pitaco em comportamento. Sempre progressista, o pensamento. Ela quer aprender, quando começou a se meter um pouco em política, fez várias aulas com a Gabriela Prioli, ficou amiga dela. A Anitta falou em Harvard para uma plateia de executivos. Então a Anitta tem esse controle absoluto da carreira dela e ela faz muito, imensamente pela música do Brasil em geral, porque ela tem muitos elementos de música brasileira, ela sempre fala, a personalidade dela é brasileira, a formação musical dela é brasileira. O Brasil devia agradecer de joelhos à Anitta.
O senhor acha que ela tem uma responsabilidade, também?
Ela tem consciência da responsabilidade que tem, pelo que pode gerar. Ela é bem cuidadosa nos movimentos exatamente por isso, porque ela sabe que pode mexer até com a bolsa de valores.
O senhor também já defendeu a Luísa Sonza, que se aventurou recentemente pela MPB.
Foi bem diferente...
O que achou da iniciativa dela e do resultado?
Adorei a Luísa Sonza cantando bossa nova. Adorei. É realmente uma bossa nova moderna, com uma linguagem atual, mas também amorosa. Pensei: que garota sensacional, cantando muito bem, ela tem uma voz boa para a bossa nova, que não exige grandes gritarias. A gravação ficou maravilhosa. E aí, quando começou essa polêmica toda em torno disso, não havia motivo nenhum... Pô, uma mulher fazendo uma música para um cara, isso não é nenhuma novidade, a Rita Lee fez 200, a Joyce, a Marisa, essas compositoras mulheres já fizeram muita música para homens. Talvez para o público da Luísa Sonza tenha sido um choque. acho que o público básico dela nem sabe direito o que é bossa nova. Então o episódio foi bom ainda por isso: ajudou a educar um pouco. Quando a elogiei, ela me agradeceu, foi supergentil e humilde, muito legal a garota, gostei de conhecer ela. E acho que esse episódio também abriu bastante a cabeça dela. Tive essa impressão: ela agora pode se orientar melhor e orientar melhor o seu público. Vamos ver o que ela vai fazer. Ela é uma boa cantora e tem tudo para ser ótima.
Que avaliação o senhor faz das letras atuais da música brasileira, que, muitas vezes, são genericamente descritas como demasiado pornográficas ou criticadas por apenas falar, por exemplo, em “sentar”?
Sou um grande fã do Mr. Catra, que é o maior pornógrafo do funk brasileiro, criador do funk bandido. Mas o Catra fazia samba também, fazia tudo, era genial. O Catra praticamente esgotou a baixaria, eu sempre achei erótico zero, sempre achei engraçado, cômico, esses exageros, coisas dançantes, coisas de brincadeira. Então, é uma vertente da música. Grandes letras continuam sendo feitas. Olha as letras do Tim Bernardes, para pegar um mais novinho. O Rubel também, as letras são ótimas, as letras do Silva são excelentes. E, como eu disse, os letristas dos anos 1970 continuam em atividade. Você vê quantas músicas novas do Lulu Santos existem. A cada três meses ele lança mais uma. É uma atividade incrível. Gil e Caetano estão rodando o mundo com os filhos, os netos, a família, isso é tão lindo. A música brasileira vive, mais uma vez, uma fase riquíssima. A prova disso, que no fundo sempre é a do comércio, do dinheiro, do sucesso, é que tem um festival por dia em algum lugar do Brasil. E sempre com artistas superpopulares, ou médio populares, novos, de nicho, de sertanejo, de eletrônica, de funk, de MPB. De tudo um pouco.
O senhor mudou de opinião em relação ao sertanejo ou continua com o mesmo pensamento que encerra o livro Noites Tropicais?
Não mudei. Mas, de fato, eu estava muito irritado, porque era uma hegemonia absoluta, eu nunca tinha visto isso no Brasil, parecia não haver espaço para mais nada. Eu odeio qualquer forma de hegemonia. Agora estou mais calmo em relação a isso, acabei conhecendo mais artistas sertanejos de qualidade, que não estão dentro do meu gosto pessoal, mas nos quais eu reconheço muita qualidade artística. Não sou burro, nem preconceituoso, mas não é o que eu ouço em casa. O sertanejo não me incomoda mais nesse sentido, eu simplesmente não acompanho. Temos um país de 200 milhões de habitantes, com essa diversidade étnica, histórica, cultural, musical, rítmica, uma riqueza enorme. Eu digo sempre: a maior riqueza, a maior qualidade da música brasileira é a diversidade. Nenhum país do mundo tem essa diversidade musical, nem os Estados Unidos.
O senhor também é um grande defensor da maconha. Inclusive, participou do livro Baseado em Papos Reais, lançado em agosto. Hoje, aos 79 anos, qual a sua posição sobre o assunto?
Eu fumo há mais de 50 anos, sempre fumei, sempre me dei bem. Tem gente que se dá mal, Caetano Veloso fumou uma vez e pensou que ia morrer, quase foi para o hospital. Ele conta isso no livro Verdade Tropical. Para mim, só faz bem, porque eu trabalho, todo mundo sabe o quanto eu trabalho, o quanto eu produzo. Então, não tem esse mito da preguiça, da lerdeza, nada disso. Nada do que eu escrevi, eu e a Rita Lee, na nossa carreira artística, foi de cara limpa, nada, nem um livro, nem uma música, nem uma crônica de jornal, nada. Acho importante desmistificar essa coisa demoníaca em torno da maconha. E é impossível não reconhecer seu valor medicinal, é uma questão encerrada, já, só vão aumentar as aplicações medicinais da erva. Como é que pode uma coisa que faz tanto bem ser a desgraça das pessoas? Não faz sentido isso. Agora, como tudo, você tem de saber seus limites.
Quais são seus próximos passos? Algum projeto em mente ou sendo preparado?
Estou terminando um livro, um romance, chama-se Orações de Papel. É uma história de amor de dois jovens de 20 anos, que se passa em 1968, durante um ano, e uma boa parte por meio de cartas de amor. É muito delicado, bonito, e é baseado em uma história pessoal. Era uma época fervilhante, e eles eram ambos espertíssimos. Vou ter de contar a história que inspirou o livro depois, mas só quando lançar. E também tenho o musical do Tom Jobim, um grande musical estilo Broadway: Tom Jobim: Vida e Obra. Já estou terminando de escrever, estará entregue no início de 2024.