Arqueólogo que alcançou notoriedade ao desafiar correntes estabelecidas do pensamento ocidental e propor uma nova história sobre a evolução das sociedades, David Wengrow, 51 anos, encerrou o Fronteiras do Pensamento 2023. O britânico é coautor de O Despertar de Tudo: Uma Nova História da Humanidade, best-seller internacional e finalista do Prêmio Orwell em 2022, escrito em parceria com o falecido antropólogo David Graeber. Antes de sua conferência, o professor da University College London concedeu entrevista a GZH no hotel em que estava hospedado em Porto Alegre. No diálogo, discorreu sobre as descobertas envolvendo sociedades pré-históricas e indígenas complexas – que já se organizavam política e socialmente antes dos colonizadores chegarem às Américas –, sobre pesquisas promissoras na Amazônia e sobre os avanços arqueológicos que auxiliam nessas descobertas, além de se debruçar sobre a perspectiva ocidental e seus impactos na narrativa da história da humanidade.
Em O Despertar de Tudo: Uma Nova História da Humanidade, você e David Graeber fazem críticas a livros como Sapiens, de Yuval Noah Harari, também best-seller, em seu relato sobre a evolução humana. Por quê?
Não gastamos muito tempo criticando ninguém em nosso livro. Acho que provavelmente cerca de 98% do livro apresenta novas ideias e novas informações. Mas ocasionalmente pensamos que é útil para o leitor ver as diferenças entre o tipo de evidência que temos hoje em nossos campos, a Arqueologia, no meu caso, e a Antropologia, no caso de David Graeber, e o tipo de best-sellers a que você refere. Então, apenas indicamos, de vez em quando, quais são as principais diferenças.
Você propõe uma nova história da humanidade, destacando formas alternativas de liberdade e organização social que já existiam nas sociedades pré-históricas e indígenas e refutando um modelo linear de evolução. Você poderia sintetizar esse pensamento?
Esse é um exemplo muito bom em que acho útil contrastar nossa abordagem com algumas dessas outras abordagens. Sapiens em algum momento diz que estamos sempre como que presos pelas nossas capacidades como seres humanos e que a história da humanidade é uma jornada a partir de pequenas gaiolas que fazemos para nós mesmos, para uma prisão maior da nossa imaginação, o que é realmente uma visão muito sombria da humanidade. Na verdade, o que eu e David descobrimos em nossa pesquisa sobre a história humana é que as pessoas sempre criaram gaiolas e depois pularam para fora delas, e realmente encontraram maneiras de desmantelar e reestruturar o tipo de sociedade em que vivem. Tendemos a pensar nesse tipo de liberdade para criar diferentes formas de sociedade como um fenômeno moderno, mas, na verdade, encontramos provas disso desde os antigos caçadores-coletores, antes da invenção da agricultura. Na verdade, em alguns aspectos, esses povos eram mais livres e experimentais do que nós.
O que o pensamento que não considera as sociedades pré-históricas e indígenas livres e experimentais afirma sobre essas sociedades?
As sociedades indígenas têm histórias próprias muito longas e complexas. Essas histórias têm sido, penso eu, ocultadas da compreensão das sociedades europeias, principalmente porque são muitas vezes pessoas que não utilizavam sistemas de escrita. Eles não deixaram registros escritos para trás. E sua história recente, nos últimos três a cinco séculos em particular, tem sido, evidentemente, uma história catastrófica, na qual cerca de 90% das suas populações foram perdidas e mortas. Então, essas são pessoas que foram realmente arrasadas. Mas agora, e especialmente aqui no Brasil, os arqueólogos estão encontrando evidências de que as sociedades indígenas realmente tinham civilizações espetaculares e sofisticadas antes da chegada dos europeus, inclusive em toda a região da Amazônia. Por outro lado, é verdade que a forma como os europeus pensam a História foi profundamente influenciada pelas críticas que os povos indígenas contemporâneos fizeram à sociedade europeia quando as duas civilizações se ligaram. Algumas dessas críticas foram escritas por europeus, missionários, comerciantes, soldados. E encontraram o caminho de regresso à Europa, onde causaram uma enorme impressão na sociedade europeia exatamente na época do Iluminismo e depois da Revolução Francesa, porque muitas dessas críticas centraram-se na falta de liberdade na sociedade europeia, na natureza incrivelmente hierárquica das sociedades, na autoridade da religião e da igreja e na falta de liberdades das mulheres. Isso era surpreendente e estranho às sociedades indígenas, quando encontraram pela primeira vez os europeus. E isso deu aos filósofos e intelectuais europeus uma perspectiva diferente sobre sua própria sociedade. Hoje, se você tentar se referir de alguma forma positiva a essas críticas indígenas, poderá ser acusado de ser romântico, de repetir fantasias sobre o que é chamado de “nobre selvagem”, a pessoa primitiva que vive de modo mais feliz ou igualitário. Claro, essa romantização acontece. Mas penso que não deve nos impedir de prestar atenção à substância e ao conteúdo real das filosofias indígenas.
Tendemos a pensar na liberdade para criar diferentes formas de sociedade como um fenômeno moderno, mas, na verdade, encontramos provas disso desde os antigos caçadores-coletores, antes da invenção da agricultura. Na verdade, em alguns aspectos, esses povos eram mais livres e experimentais do que nós.
Os indígenas também ficaram chocados com a desigualdade, certo?
Sim, especialmente coisas como falta de moradia. Há muitas descrições de como os nativos, por exemplo, nas colônias francesas da América do Norte, veriam algo com o qual todos estamos familiarizados agora, que são pessoas que caíram no esquecimento da sociedade e vivem nas ruas. A exclusão parece ser um completo mistério para eles. Como você pode, dentro de sua própria comunidade, seu próprio povo, permitir que as pessoas caiam nessa condição? Também há muitos casos de indivíduos no Brasil, acho que o mais famoso é o caso de Helena Valero, uma menina hispano-europeia que foi capturada nas profundezas da Amazônia e adotada pela sociedade yanomami perto da fronteira com a Venezuela. Várias vezes ela deixou os yanomami para voltar à sociedade europeia e tentar encontrar suas raízes e acabou descobrindo que era mais feliz com os yanomami, para onde voltou e viveu o resto de sua vida. É apenas um exemplo, mas na verdade há muitos mais, também de outras sociedades coloniais. É uma questão interessante perguntar por que isso acontece. Se as teorias de, digamos, alguém como Steven Pinker estão corretas, e as chamadas sociedades tribais vivem constantemente nesse estado de perigo, selvageria e brutalidade, por que alguém decidiria conscientemente abandonar a civilização e viver lá? Há descrições, por exemplo, do século 18 na América do Norte, de que os pais vinham resgatar crianças capturadas em ataques e adotadas em sociedades indígenas, e os filhos diziam: não, não queremos voltar. Provavelmente uma razão para isso é que as sociedades europeias eram muito violentas. Eles disciplinavam as crianças dando-lhes tapas. Isso, novamente, era estranho aos povos nativos. Foi amplamente comentado depois que os colonos europeus se adaptaram de algumas maneiras e incorporaram algumas ideias. O que é interessante, penso eu, é que, de certa forma, algumas atitudes expressadas pelos povos indígenas de séculos atrás estão mais próximas das nossas atitudes de hoje do que nós estamos das atitudes dos nossos próprios antepassados europeus, digamos, do século 17 ou do 18.
Como vocês dois chegaram a essas conclusões?
David realizou a maior parte do seu trabalho de campo antropológico em Madagascar, e a maior parte da minha investigação arqueológica em terreno foi realizada na África e no Oriente Médio. E as questões que abordamos no livro são realmente o tipo de grandes questões dos nossos campos. Mas, por alguma razão que realmente não entendemos, fazia muito tempo que um arqueólogo e um antropólogo não escreviam juntos um livro como este. O que há, recentemente, são best-sellers sobre os assuntos em que nós somos treinados, mas que são escritos por pessoas de outras disciplinas, economistas, psicólogos, geógrafos, biólogos. Não há nada errado com isso, acho que as pessoas deveriam olhar além das disciplinas em que treinaram. O único problema é quando começam a entender tudo errado. Nós sentimos que era realmente muito importante explicar aos leitores o que descobrimos, e não apenas manter essas descobertas trancadas em revistas especializadas e universidades.
Algumas atitudes expressadas pelos povos indígenas de séculos atrás estão mais próximas das nossas atitudes de hoje do que nós estamos das atitudes dos nossos próprios antepassados europeus, digamos, do século 17 ou do 18.
Como a arqueologia ajuda as pesquisas sobre a organização social de sociedades antigas?
Só temos registros escritos talvez dos últimos 2% da história humana. Os humanos existem há cerca de 300 mil anos, se considerarmos pessoas como nós, em termos de capacidades cognitivas e físicas. Ou seja, 98% dessa história só nos é acessível por meio de métodos arqueológicos. E esses métodos estão mudando muito rapidamente. É incrível o quanto isso mudou apenas durante a minha vida. O tipo de técnicas científicas que temos hoje em dia nos permite reconstruir a dieta das pessoas, de onde vinham, como se moviam pela paisagem, e isso mesmo dezenas de milhares de anos atrás. Ao mesmo tempo, quando a maioria das pessoas pensa em arqueologia, pensa em cavar, desenterrar coisas antigas do solo. Mas, na verdade, grande parte da arqueologia hoje é feita a partir do espaço sideral, com imagens de satélite ou sensoriamento remoto, ou é feita sob um microscópio em laboratório, observando coisas como a composição de artefatos antigos, DNA antigo e genética. No Brasil e em toda a região da Amazônia essas técnicas criaram uma revolução, porque era impossível ir a fundo na Amazônia para realmente fazer escavações arqueológicas. E agora temos técnicas como a tecnologia LiDAR, que é como um drone que projeta um laser para baixo, que corta as árvores, a copa da floresta, e capta as formas de estruturas antigas na terra. Portanto, é uma espécie de sensoriamento remoto. O impacto disso em áreas com muita floresta foi como uma revolução, porque revelou que toda a Amazônia está coberta de estradas, edifícios monumentais e todas essas formas perdidas, não apenas da vida nas aldeias, mas até mesmo da urbanização, que remonta a centenas ou mesmo milhares de anos. Portanto, esses tipos de tecnologia revelaram realmente, em primeiro lugar, que havia muito mais pessoas aqui do que costumávamos pensar, e que essas paisagens que pensávamos naturais ou selvagens são exatamente o oposto. Elas são, na verdade, o resultado de milhares de anos de ocupação humana, comércio, guerra e formas complexas de sociedade indo e vindo. Mas talvez a descoberta científica mais radical das últimas gerações tenha sido sobre o solo. Sempre se presumiu que regiões como a Amazônia eram uma natureza selvagem intocada, mas agora é amplamente aceito que em uma região muito grande da Bacia Amazônica, incluindo o Brasil, você tem esses solos especiais, chamados de terra preta de índio, e esses não são solos naturais, são solos culturais, criados pelo homem. Quando as populações indígenas ocupavam um pedaço de terra, muitas vezes deixavam deliberadamente para trás muito lixo orgânico. Eles se mudavam para outro lugar e, com o tempo, isso teve o efeito de enriquecer os solos e dar-lhes uma fertilidade e uma capacidade de carga que é muito maior do que os solos tropicais normais. Eles se tornaram como solos de jardim nos quais você poderia cultivar muitas variedades de vegetais e frutas. Portanto, essa é uma forma indígena de manejo da terra que na verdade enriqueceu o solo onde ela está assentada. E, de muitas maneiras, criou os ambientes que vemos hoje e que erroneamente pensamos que são naturais.
Podemos dizer que o Brasil está tendo hoje um papel importante nessas pesquisas?
Não sou de forma alguma um especialista no que está acontecendo aqui, mas minha impressão como alguém de fora é que, apesar de toda a turbulência política e dos muitos desafios do país, o que está acontecendo é que o Brasil é um dos lugares mais dinâmicos do mundo nesses tipos de questões. E também estou ciente de que no Brasil há muitos jovens indígenas entrando nas universidades e se tornando arqueólogos e antropólogos, o que não está acontecendo em todos os lugares. Isso é emocionante. Vai transformar a nossa compreensão da História, não apenas nessa região, mas em todo o mundo.
No Brasil há muitos jovens indígenas entrando nas universidades e se tornando arqueólogos e antropólogos, o que não está acontecendo em todos os lugares. Isso é emocionante. Vai transformar a nossa compreensão da História, não apenas nessa região, mas em todo o mundo.
Como essas descobertas que vocês evidenciam afetam o que sabemos sobre a democracia e suas origens?
Tendemos a pensar na democracia como algo que os europeus trouxeram para o resto do mundo. Costuma-se dizer que houve muita violência no processo da colonização europeia do globo, mas que, bem, pelo menos os europeus trouxeram a democracia, a industrialização e essas outras características da vida moderna. Isso simplesmente não é verdade. Temos uma descrição detalhada de uma cidade indígena no México que foi descoberta pelos conquistadores liderados por Hernán Cortés, no século 16, a caminho da capital do Império Asteca, onde, é claro, eles venceriam a batalha e assumiriam o controle de Tenochtitlán. Como esse pequeno grupo de aventureiros espanhóis fez isso? Formando uma aliança com outra cidade, chamada Tlaxcala. Exceto que Tlaxcala não era um reino. Temos descrições do próprio Cortés, enviadas para o rei da Espanha, e também muitos outros relatos de que Tlaxcala realmente tinha um parlamento urbano onde não havia reis. Eles tomariam decisões por meio do debate e do consenso. E, no final, eles concordam em enviar um grande número de guerreiros de Tlaxcala com os espanhóis para Tenochtitlán. É por isso que os espanhóis são capazes de derrotar os astecas, que é realmente o evento fundador do imperialismo ocidental moderno. E sempre nos dizem que esta é basicamente uma história sobre Armas, Germes e Aço, como o título do famoso livro de Jared Diamond, mas o que as pessoas não sabem é que isso é também, em grande parte, o resultado dessas deliberações que aconteceram em uma democracia urbana indígena, em uma altura em que democracias como essa eram quase inéditas na Europa. Portanto, elas estavam à nossa frente se encararmos a democracia como um valor progressista em populações de grande escala. E é também um exemplo importante, porque mostra que a democracia e o igualitarismo existiam em grande escala na vida indígena, não foram algo trazido pelas civilizações europeias.
O quão importante é quebrar essa narrativa eurocêntrica e decolonizar a História?
Eu ensino em uma grande universidade em Londres e tenho um grupo de alunos que vêm de origens muito diferentes. Alguns mais privilegiados, outros são os primeiros da família a ter Ensino Superior. Acho que você se refere à narrativa ocidental, que simplesmente não faz mais sentido nesse ambiente diverso. Achar que todas as descobertas importantes para a civilização moderna aconteceram apenas na Europa como parte de uma herança única da Grécia antiga não faz mais sentido, além de, basicamente, não ser correto, porque exclui muitas pessoas que não se encontram na própria História. Onde está minha História? Onde está minha família? Penso que encontrar o caminho dessas respostas tem efeito na sociedade em geral, no sentimento das pessoas de que são capazes de contribuir para a sociedade. A História nunca está apenas no passado. Nós a fazemos agora.
De que maneira essa reconstrução histórica pode afetar o futuro da humanidade?
Se pensarmos na história tradicional da humanidade, ela nos diz que a desigualdade é inevitável, foi o preço necessário da civilização, sem desigualdade não poderíamos ter tido progresso nas ciências e nas artes. Isso é algo muito pesado para se carregar. Se você está tentando pensar em como poderíamos ter uma sociedade mais justa, mais igualitária, você é chamado de sonhador, utópico, louco. Mas as desigualdades foram fixadas por coisas que aconteceram há milhares de anos. A invenção da agricultura, o crescimento das cidades, as origens do Estado. Em nosso livro, usamos as evidências do passado humano para desafiar essa História e cortar os elos da corrente que mantém esse objeto pesado amarrado ao seu tornozelo, fazendo com que você tenha de carregar esse peso. Eventualmente, a corrente vai parecer fraca. E a bola vai cair. Não é que estejamos dizendo a alguém que é assim que o futuro deveria ser. Mas significa que se você quiser ir para lá, não precisará mais carregar essa coisa no pé. Em outras palavras, a História e a evolução não são um obstáculo à mudança.
O tema desta edição do Fronteiras do Pensamento foi “Entre o caos e a ordem: um guia sobre como navegar em uma era de incerteza”. Sua palestra encerrou o ciclo. Qual é o cerne da sua mensagem, nesse contexto?
Acho que a mensagem central é que, em muitos aspectos, quando as pessoas são confrontadas com questões muito desafiadoras, podem ser esmagadas. Neste momento em que estamos como humanidade, temos muitas decisões monumentais a tomar, e, quando somos confrontados com esse tipo de decisão, a tendência natural é nos retirarmos para algo familiar e seguro. O que quero deixar como mensagem é que, na verdade, os seres humanos em geral, ao longo de toda a História, têm sido muito corajosos e experimentais na forma como criaram novas estruturas para viver, novos tipos de sociedade. E muitas pessoas hoje argumentariam que realmente o desafio de garantir que haja um futuro neste planeta para os nossos filhos e para os filhos dos nossos filhos começa na mente, na imaginação e em ter a liberdade para considerar formas alternativas de estruturar as sociedades em que vivemos e como elas se relacionam com o meio ambiente. Trata-se de uma provocação. Quando olhamos para o amplo panorama da História, vemos essa experimentação. Então realmente é verdade o que escritores como Pinker e Harari nos dizem? Que, como espécie, o Homo sapiens, que supostamente significa o macaco inteligente, esqueceu de como mudar as regras do jogo? Esperamos que a resposta seja não.