Considerado um dos maiores especialistas em ciência do solo no mundo, Rattan Lal, 78 anos, entende que a agricultura pode ser a solução para os problemas ambientais – e o agro brasileiro pode liderar esse movimento. O agrônomo esteve em agosto em Gramado, na Serra, para palestrar na 78º Semana Oficial da Agricultura e Agronomia sobre como a agricultura brasileira pode contribuir para a sustentabilidade global. Lal recebeu o Prêmio Nobel da Paz de 2007 e o Prêmio Mundial de Alimentação 2020, a principal honraria individual envolvendo a qualidade ou a disponibilidade de alimentos no mundo. Ele é professor de Ciência do Solo e diretor do Centro para Gerenciamento e Captação de Carbono da Universidade de Ohio. Já trabalhou também na Ásia, Austrália e América Latina. Nesta entrevista, concedida no hotel onde estava hospedado, Lal elogia a agricultura brasileira, mas afirma que a ambição de um agro com zero emissão de carbono é tímida: há potencial para produtores brasileiros fazerem mais pelo meio ambiente.
Qual é a relação entre o manejo adequado do solo e a mitigação dos efeitos climáticos?
O solo contém uma quantidade muito grande de carbono nos três metros próximos à superfície. No primeiro metro próximo à superfície, há cerca de 2,5 trilhões de toneladas de carbono. Se considerarmos todo o carbono das árvores, madeiras, gramíneas e vegetação, incluindo a Amazônia, temos 630 bilhões de toneladas de carbono na Terra. Na atmosfera, são 840 bilhões de toneladas de carbono. Portanto, o solo é um reservatório muito grande desse elemento, uma pequena quantidade liberada na atmosfera pode causar uma diferença significativa. O objetivo de projetos de sequestro de carbono é retirar o dióxido de carbono da atmosfera e colocá-lo de volta no solo. E por que queremos fazer isso? Porque, desde o início da agricultura, cerca de 10 mil anos atrás, à medida que desmatamos florestas para cultivar a terra, o arado e a erosão levam à remoção de carbono do solo. Desde 1930, mais carbono saiu do solo do que dos combustíveis fósseis. Desde o início da agricultura até agora, cerca de 550 gigatoneladas de carbono saíram da Terra, e 450 gigatoneladas vieram de combustíveis fósseis. Se conseguirmos devolver o carbono que saiu da terra para a atmosfera e, ao mesmo tempo, parar de queimar combustíveis fósseis, essas duas decisões juntas podem causar uma grande diferença em termos de mitigação e adaptação. O solo pode se tornar uma solução.
Como a saúde do solo e a fome estão relacionadas?
As pessoas são reflexo do solo em que vivem. Quando o solo é pobre, as pessoas são pobres e miseráveis. E, quando as pessoas são pobres e miseráveis, elas transmitem suas misérias e sofrimentos para o solo. A partir do próximo ano, ministrarei um curso na Universidade Estadual de Ohio sobre Saúde Única (One Health). É o conceito de que a saúde do solo, das plantas, dos animais e do planeta é uma só e indivisível. Quando a saúde do solo decai devido à má gestão da terra, a saúde das pessoas e do ambiente também se deteriora. É por isso que aguardo uma Lei de Saúde do Solo em todos os países. Nos Estados Unidos, temos a Lei do Ar Limpo desde 1967 e a Lei da Água Limpa desde 1972. Mas não podemos ter ar e água limpos sem solo saudável. Como professor, trabalho para que tenhamos um solo saudável. Isso significa que agricultores devem gerir adequadamente a saúde do solo e que deveriam ser reconhecidos por isso. Assim, mesmo que produzam menos, não terão menos lucro. A sociedade – incluindo nós, consumidores – deve pagar o preço por gerenciar um solo saudável.
O senhor poderia explicar quem são os refugiados do solo e como isso se relaciona às mudanças climáticas?
Em um solo muito saudável, agricultores produzem duas ou três safras e retiram todos os nutrientes, fazendo com que o solo eventualmente empobreça. Isso ocorre porque você não adiciona nada de volta. Mas o solo é como uma conta bancária: você nunca pode retirar mais do que colocou nele. Isso é chamado de lei do retorno. Quando as pessoas estão desesperadas ou pouco informadas e tiram mais do que colocam, a terra se degrada progressivamente a ponto de não se sustentar mais. Nesse ponto, as pessoas começam a migrar para outros lugares. Esse é o problema na fronteira entre Estados Unidos e México: centenas de milhares de pessoas migram de todo o mundo, especialmente de países cujos solos não os sustentam. Aqueles que não conseguem obter seu sustento do solo se tornam refugiados. Temos refugiados climáticos, refugiados devido à escassez de água e refugiados políticos. Mas a falta de solo e a capacidade de produzir alimentos de boa qualidade e em quantidade suficiente podem criar refugiados. Isso é um grande problema global, que foi agravado pela guerra na Ucrânia. Temos tantas mortes e feridos, isso é verdade. Mas a tragédia maior, que ninguém sabe, é a degradação do solo, com todos esses contaminantes como metais pesados, petróleo, destruição da vida selvagem e da mãe natureza. Levará séculos para restaurar. E ninguém fala disso, nem mesmo o Papa. Essas situações são extremamente críticas na África, no Sul da Ásia, na região dos Himalaias e do Tibete e em parte da América Central. A terra não sustenta as pessoas. A saúde do solo e a estabilidade política estão intimamente ligadas.
Por quê?
Quando o solo não sustenta as pessoas e elas se mudam para outro lugar, ninguém as quer. E aí está o conflito. Na semana passada, enviei um artigo para uma revista no qual explico que houve muitas guerras no sul da Ásia, no Irã, Afeganistão, Paquistão, Índia, Nepal, Bangladesh, Butão e Sri Lanka, e o inimigo comum principal é a degradação do solo e do meio ambiente. A ONU, os Estados Unidos e a União Europeia devem olhar para o sul da Ásia. A paz no mundo virá quando aprendermos a viver em harmonia com a natureza.
Venho ao Brasil desde 1975. Vi o cerrado quando havia só pequenos prédios no centro das cidades, e a agricultura não era bem-sucedida devido à alta acidez e ao alto teor de calcário. Hoje, a produção de soja no cerrado é maior por hectare do que no Meio-Oeste dos EUA.
O senhor já afirmou que a agricultura brasileira é uma história de sucesso. Por quê?
Venho ao Brasil desde 1975. Vi o cerrado quando havia apenas pequenos prédios no centro das cidades, e a agricultura não era considerada bem-sucedida devido à alta acidez e ao alto teor de calcário. Desde então, a produção de soja e de algodão no cerrado é notável. A produção de soja no cerrado é maior por hectare do que no Meio-Oeste dos Estados Unidos. O Brasil é o maior exportador de alimentos do mundo. É realmente um sucesso notável. No entanto, preocupa o fato de que o sucesso é baseado no uso intensivo de insumos, seja energia ou fertilizantes. Com o tempo, isso pode levar à degradação do meio ambiente. Pode haver poluição da água, qualidade do ar comprometida, com emissão de gases de efeito estufa. A filosofia deveria ser produzir mais com menos. Menos terra, menos água, menos energia, menos produtos químicos, menos pesticidas, menos poluição, menos emissão de gases de efeito estufa, mesmo que a produção seja menor. O objetivo não é maximizar a produção, mas otimizá-la de forma sustentável.
O senhor está pedindo para repensarmos o uso do solo, de algum modo.
Sim. A Revolução Verde deveria ser baseada no solo e na qualidade do meio ambiente para que a saúde e a qualidade do solo e do meio ambiente sejam mantidas com alta qualidade para sempre. É verdade que agricultores terão uma produtividade menor, talvez 10%. Então isso significa que a sociedade, o consumidor, você e eu, deveríamos estar dispostos a pagar por isso. Também é necessária uma política para pessoas pobres não sofrerem. Assim como temos o Banco Mundial para empréstimos, deveríamos ter um Banco para Alimentos, no qual os alimentos excedentes produzidos no Brasil ou em outros lugares possam ser armazenados, processados e fornecidos às pessoas necessitadas a um preço reduzido.
Produtores não são contra mudar sua produção, eles carecem de apoio para mudar suas práticas.
Precisamos garantir que agricultores que produzem não sejam penalizados. A sociedade deve estar disposta a pagar para transformar a agricultura em uma solução para o governo. E é isso que uma Lei de Solo Saudável deveria ser.
Assim como temos o Banco Mundial para empréstimos, deveríamos ter um Banco para Alimentos, no qual os alimentos excedentes produzidos no Brasil ou em outros lugares possam ser armazenados, processados e fornecidos às pessoas necessitadas a um preço reduzido.
Setenta milhões de brasileiros sofrem de insegurança alimentar, segundo estudo recente da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura. Mas somos um dos líderes em produção de alimentos. Como resolver essa equação?
E, globalmente, são 1,2 bilhão de pessoas em insegurança alimentar. Isso não ocorre por falta de produção, mas falta de distribuição. É instabilidade política, falta de recursos. Portanto, é um problema político, não um problema de produção. Produzimos globalmente 3 bilhões de toneladas de grãos, dos quais 1,2 bilhão não chega a nenhum estômago, humano ou animal. A quantidade de desperdício é a mesma em países desenvolvidos e em desenvolvimento. Nos países em desenvolvimento, o desperdício ocorre entre a fazenda e o mercado. É falta de armazenamento e processamento adequados. Mas, em países ricos e em parte do Brasil, o desperdício ocorre do mercado até a mesa de jantar. No entanto, a quantidade de desperdício é a mesma. Não precisamos produzir mais. É uma questão política, financeira e de desigualdade.
Para parte da esquerda brasileira, a agricultura é vista como a vilã que prejudica o meio ambiente. O que o senhor pensa dessa perspectiva e como podemos mudá-la?
As pessoas acham que a agricultura é um problema. Mas as únicas pessoas que têm o direito de culpar a agricultura são aquelas que não comem comida. Se você gosta de comer, não pode culpar um processo que produz a necessidade mais básica, que é a comida. É nossa obrigação e dever garantir que esse processo seja adequado. A agricultura deve ser uma solução para as questões ambientais. Se praticarmos a agricultura corretamente em todo o mundo, a mitigação das mudanças climáticas, a poluição da água e o dano à paisagem causado pela erosão podem ser resolvidos. No entanto, a agricultura mais amigável nem sempre é a mais produtiva. É aqui que você deve garantir que os agricultores não sofram. A sociedade e as políticas governamentais devem considerá-los. Isso é o que entendo por políticas pró-natureza e pró-agricultura.
O governo Lula tem como objetivo tornar o Brasil um líder na economia verde global. o senhor acha que o Brasil tem esse potencial?
O Brasil mostrou resiliência nos últimos 25 anos por meio da produção agrícola. É uma das maiores economias do mundo e está crescendo muito rapidamente. Portanto, não vejo por que o Brasil, junto com outros países da economia emergente, como China, Índia e México, não poderiam fazê-lo. No Brasil, estou impressionado com todos os recursos naturais, vocês têm cinco ecossistemas. As pessoas têm alto grau de educação.
Produzimos globalmente 3 bilhões de toneladas de grãos, dos quais 1,2 bilhão não chega a nenhum estômago, humano ou animal. Nos países em desenvolvimento, o desperdício ocorre entre a fazenda e o mercado. Mas em países ricos e em parte do Brasil, o desperdício ocorre do mercado até a mesa de jantar.
Setenta por cento de toda a água usada pela população mundial é destinada à agricultura. Como o senhor avalia a forma como a agricultura global está lidando com a questão da água?
A maioria disso é usada para irrigação, principalmente para a irrigação por inundação, quando uma área é inundada por polegadas de água. É um método de irrigação muito primitivo que foi desenvolvido há 78 mil anos e ainda estamos usando, mesmo nos Estados Unidos. Deveríamos estar falando sobre irrigação por gotejamento. É um tubo de onde a água sai gota a gota. A fertirrigação é a irrigação e a aplicação de fertilizantes juntos nas raízes das plantas quando é necessário. Portanto, a eficiência do uso de fertilizantes e água é muito alta. Mas, atualmente, é muito baixa. A eficiência do uso de nitrogênio é de cerca de 25% a 30% nos países em desenvolvimento. Mesmo nos Estados Unidos, é cerca de 50% a 60%. No Brasil, talvez 30% a 35%. Que negócio pode sobreviver quando 70% do investimento é desperdiçado, seja água ou fertilizante? A ideia não é colocar mais água e mais fertilizantes, mas melhorar a eficiência do uso. O mundo usa 3,2 mil quilômetros cúbicos de água na irrigação. Isso deveria ser reduzido pela fertirrigação por gotejamento ou irrigação a vapor. A irrigação é necessária em climas quentes e secos. A água, em vez de ser transportada como líquido em um tubo, poderia ser transportada como vapor em um tubo – o vapor se condensa automaticamente nas raízes das plantas. Precisamos pensar de forma mais inovadora como economizar água. Assim como o solo, tratamos a água como algo dado. Poluímos, abusamos, usamos de forma inadequada e desperdiçamos.
Aproximadamente 30% das emissões globais de gases de efeito estufa vêm do sistema de produção de alimentos. Como tornar a agricultura mais ecologicamente amigável?
A agricultura, que é a produção de alimentos, contribui com cerca de 15 a 20% das emissões. Os 30% correspondem ao sistema de alimentos, que inclui produção, transporte, processamento e embalagem. Se melhorarmos a eficiência do uso de energia... A energia do etanol de cana-de-açúcar no Brasil é um ótimo exemplo. Acho que economizar energia é definitivamente importante. Outra parte é reduzir as emissões de óxido nitroso e metano. O metano é produzido pelo gado no estômago e é 21 vezes mais importante na causa do aquecimento global do que o dióxido de carbono. Ambos os gases vêm da agricultura e dos fertilizantes nitrogenados. A agricultura deve ser moderna e inovadora para minimizar a emissão desses gases. Além disso, devemos devolver o carbono ao solo. Se devolvermos metade desse carbono e, ao mesmo tempo, encontrarmos alternativas aos combustíveis fósseis, a agricultura se tornará um sumidouro de carbono e uma tecnologia de emissões negativas. Já li muitas vezes no Brasil que “queremos tornar a agricultura neutra em emissões”. É uma ideia errada. A agricultura não deve ser neutra em emissões, ela deve ser negativa em emissões. Se investirmos uma tonelada de carbono na agricultura, devemos produzir 10 toneladas de carbono como biomassa. Isso são emissões negativas.
Então deveríamos ser mais ambiciosos.
Devemos sequestrar carbono na terra e produzir mais.
Qual é o potencial do mercado de carbono para realmente contribuir para o meio ambiente?
Isso significa cultivar carbono para gerar renda ao agricultor, e não apenas liberá-lo na atmosfera. Existem indústrias que não conseguem ser neutras em emissões, mas a agricultura deveria ser negativa em emissões. Indústrias podem pagar ao agricultor o que chamamos de “negociação de carbono”. Elas dizem aos agricultores: “Compraremos de você uma tonelada de carbono por hectare, e se você tiver 500 hectares de terra, compraremos 500 toneladas de crédito de carbono”. E um crédito de carbono é uma tonelada de gás carbônico. Esse sistema foi testado nos Estados Unidos em 2000 com a Chicago Climate Exchange, que pagava US$ 1 por crédito. Mas os Estados Unidos não assinaram o tratado de Kyoto, o que significa que qualquer pessoa pode queimar a quantidade de carbono que quiser. Se podem queimar o quanto quiserem, não há necessidade de comprar créditos de ninguém. No entanto, existe outra abordagem: pagar ao agricultor pelos serviços ecossistêmicos, independentemente do que aconteceu com os combustíveis fósseis. Se pagarmos aos agricultores de maneira justa e transparente, isso será uma mudança de política realmente importante para transformar a agricultura em solução. Lula disse que haverá a COP-30 em Belém (PA). Talvez ele pudesse declarar lá que pagará aos agricultores US$ 50 por crédito de carbono. Gostaria de ouvir esse discurso. E que o Brasil se torne um modelo a ser seguido. Mas esperar que os agricultores façam coisas boas sem serem pagos não é realista. Isso nunca acontecerá. O pagamento por serviços ecossistêmicos deve ser parte da política em nível nacional e internacional.