Buscando apontar aplicações práticas para tradicionais conhecimentos filosóficos, Lúcia Helena Galvão coleciona fãs nas redes sociais. A filósofa, professora, escritora, poeta e palestrante de 59 anos é voluntária há mais de 30 na escola de filosofia Nova Acrópole. É autora de 12 livros, entre eles Para Entender o Caibalion (2021) e A Lógica e a Inteligência da Vida (2022). Na pandemia, as palestras da carioca no YouTube se popularizaram, alcançando milhões de visualizações. Somente no Instagram, Lúcia Helena tem mais de 700 mil seguidores. Ao ser entrevistada por GZH durante passagem por Porto Alegre no fim de setembro para uma palestra, seu sucesso ficou evidente ao ser abordada por uma fã emocionada no hotel onde recebia a reportagem. Na conversa a seguir, a professora explica como a filosofia pode ajudar desde crianças a adultos e discorre sobre o que considera serem as principais questões filosóficas contemporâneas.
A senhora faz sucesso nas redes sociais falando sobre filosofia, um tema muitas vezes hermético e longe do cotidiano da população. Qual é o segredo para esse êxito junto ao público?
Na verdade, a filosofia nasceu como arte de viver, voltada para resolver os problemas práticos da vida do homem. Se você pegar a filosofia do período antigo greco-romano, vai ver várias obras voltadas para a arte de viver humanamente bem. Nós passamos por um período intermediário, que foi a Idade Média, no qual a filosofia foi engolfada pela religião. Depois vieram os períodos moderno e o contemporâneo, nos quais a filosofia se intelectualizou um pouco, afastou-se um pouco da vida prática. E o que a Nova Acrópole, que é a instituição para a qual eu trabalho, faz desde 1957, é trazer de volta essa filosofia para os seus trilhos originais. Procurar trazer essa filosofia para dentro da vida do ser humano. Discutir em sala de aula os problemas humanos atuais, os dramas, as adversidades que são enfrentadas e abordar com viés filosófico. Isso, com certeza, chega muito perto das pessoas.
E quais são os temas com os quais a senhora trabalha atualmente?
Tenho trabalhado muito conforme a demanda do público. Nós temos hoje uma demanda grande sobre ética, instabilidade emocional, ansiedade, questões de como superar adversidades, conflitos – sobretudo na época da pandemia, este último foi um tema muito pedido. Convivência também é um tema muito forte, que tem sido muito pedido pelas pessoas. A ansiedade também, a necessidade de estarmos de corpo e mente juntos no presente. Nosso trabalho é buscar fazer com que estejamos sempre tendo um presente pleno, sem tanta nostalgia do passado e sem tanta ansiedade pelo futuro, porque só um presente pleno pode trazer o futuro que a gente almeja. Estar de corpo e mente juntos no aqui e no agora e vivê-los intensamente. Isso é a abordagem básica da filosofia em relação à ansiedade. Claro que não estou falando da ansiedade patológica, que necessita de um especialista para tratamento, mas essa pré-ansiedade patológica, essa tendência que nós temos de estar esperando algo que nunca está no presente, isso a gente pode trabalhar por meio de uma boa reflexão.
A senhora é graduada em Relações Internacionais. Como a filosofia entrou na sua vida? E a senhora se considera filósofa?
Sim. Estudei até o quinto semestre do curso acadêmico de Filosofia e desisti, porque não tinha sentido acumular mais um diploma, e o curso de Filosofia não correspondia àquilo que eu esperava. Eu sempre gostei de filosofia. Aí conheci essa instituição, que é a Nova Acrópole, que era a ideia que eu tinha, sem saber que isso existia, de uma filosofia que fosse mais próxima do ser humano e das suas necessidades, e não meramente uma história da filosofia. E me afinizei muito com a instituição, então sou formada pela instituição para dar aulas dentro dela. Da mesma maneira que um professor acadêmico não pode dar aulas para nós, também não pretendo dar aulas na academia.
A senhora não considera necessário ter uma graduação para ser filósofa?
Eu considero, a partir de todos os alunos que tenho tido ao longo dessas três décadas, que a filosofia é uma tendência natural, que não é possível fabricar se a pessoa não tem, simplesmente porque ela tem um curso de bacharelado. Uma pessoa que não tem uma inquietude, uma predisposição para a filosofia, não vai ser um curso que vai despertar isso nela. Sócrates costumava dizer que a mãe dele, Fenareta, era uma boa parteira, mas uma coisa ela jamais seria capaz era dar a luz a uma mulher que não estivesse grávida. Quando você está “grávido de filosofia”, alguma instituição pode te ajudar a dar a luz. Se não está, vai ser meramente um teórico da história da filosofia. Eu vejo jovens, a gente dá filosofia para adolescentes, com uma inclinação filosófica incrível, com uma vontade de debater tudo na vida, com ideias muito boas. Já cansei de enfrentar jovens desse tipo, filósofos naturais. Portanto, eu acredito que se a natureza humana não é inclinada à reflexão, à busca de respostas mais profundas, é muito difícil você formar um filósofo simplesmente porque deu a ele um diploma. Agora, se ele é inclinada a isso, ele é um filósofo, tenha diploma ou não. E vai levar a vida assim, porque é a sua maneira de interagir com o mundo.
Senti, nas últimas gerações, uma tendência alienante maior do que no tempo que eu comecei. Parece que hoje existe uma pressão grande, com muitos apelos, para o jovem se manter alienado. O jovem me parecia um pouco mais questionador antes.
Os jovens estão mais críticos hoje ou não?
Eu senti, nas últimas gerações, uma tendência alienante maior do que no tempo que eu comecei. Parece que hoje existe uma pressão grande, com muitos apelos, para o jovem se manter alienado. O jovem me parecia um pouco mais questionador antes. Hoje tem muita coisa em cima dele para massificá-lo, um apelo muito grande da tecnologia, da mídia, então é como se tivesse diminuído a proporção de jovens que negam tudo isso e querem encontrar respostas. Ainda existem, mas eles estão um pouquinho mais alienados pelo que o nosso momento histórico oferece.
A senhora trabalha com os princípios do Caibalion, um ramo da filosofia mística baseado nas chamadas Leis Herméticas. Inclusive aborda os ensinamentos desse ramo para as crianças, no livro Caibalion – A Viagem da Vida (2022). Em sua visão, de que forma a filosofia pode ajudar os pequenos?
A gente dá aulas de filosofia para crianças a partir dos seis anos. E é um trabalho muito interessante, porque, quando você chega à adolescência, já chega com um monte de referenciais de como lidar com a natureza, de como interagir com as pessoas à sua volta, de critérios éticos como respeito, cooperação, colaboração, empatia. Quando chega à adolescência, você tem uma pessoa com parâmetros morais, já, com um conhecimento psicológico um pouco mais aprofundado da natureza humana para lidar com seus próprios conflitos. Então, a infância é um terreno muito fértil para você plantar essas bases civilizatórias, que são a ética, a estética, a convivência, a empatia. As crianças entendem e absorvem com muita facilidade. Então, trabalhamos com ecologia, com serviço social a pessoas necessitadas, levamos elas a comunidades carentes para que vejam a necessidade, sintam a dor do outro, e isso funciona muito bem.
E quanto aos adultos: como a filosofia pode contribuir para a vida?
Acredito que nossa sociedade tem muitas portas fechadas, inquietudes que a gente não tem muito como encontrar a resposta. Pelo menos não uma resposta refletida. Existem certos dogmas que a gente tem de aceitar e acabou. Mas refletir a respeito dos nossos problemas não é tão frequente assim. E o que eu mais gosto, quando eu lido com o público adulto, é que as pessoas me escrevem. Ontem mesmo aconteceu isso: uma pessoa esteve na minha palestra, é um pintor de paredes. Já recebi mensagens de pessoas que trabalham como diaristas dizendo: olha, eu ouço e entendo o que você fala e me ajuda na minha vida. Acho isso tão bonito, porque a ideia era exatamente chegar ao ser humano, independentemente de um verniz prévio de escolaridade ou cultura. E isso muitas vezes eu tenho comprovado que tem sido eficaz. Não quero comprovar que eu sei alguma coisa, não quero mostrar intelectualismo. Quero ajudar as pessoas na arte de viver. E nisso eu acho que tem sido muito bem-sucedido devido a esse tipo de retorno. Todas as angústias de criar filhos, conviver, ter de lidar, às vezes, com um trabalho que é um pouco predador, que é injusto em relação ao esforço da pessoa. Tudo isso a gente vai trabalhando, conversando a respeito, buscando soluções.
Hoje nós estamos com medo de sermos engolidos pela inteligência artificial. Há muita ansiedade em relação ao aspecto econômico, do que virá, de como ficará a sociedade, como vamos sobreviver. Existe uma ansiedade terrível, que dá uma expectativa negativa em relação ao futuro.
O que pregam o Caibalion e a chamada Filosofia Hermética?
Na verdade, são leis muito simples. Eu, inclusive, tenho uma palestra em que falo sobre o Caibalion visto da minha janela. Ou seja, como eu vejo as leis funcionando dentro da sociedade. O princípio do mentalismo, que é o primeiro, vai me ensinar que tudo o que vou realizar na minha vida nasce primeiro na minha mente. Portanto, se eu não quero ter coisas na minha vida amanhã, que eu possa não pensar nelas hoje. Tem um certo comando do meu pensamento. Saber que aquilo que eu alimento do ponto de vista mental tende a gerar fatos na minha vida. Então, ser mais consequente na maneira como eu lido com o meu pensamento. Que daí vão nascer realidades na minha vida. O princípio da correspondência, por exemplo, ensina que a maneira como trato o meu corpo físico deveria ser aplicada ao mental. A maneira que eu purifico o meu corpo todos os dias, por exemplo, por meio de um banho. Se não como qualquer alimento estragado, tampouco deveria consumir algo ruim no plano mental. Porque isso também gera um tipo de intoxicação. Devemos limpar a mente das imagens e dos conteúdos ruins, jogar coisas fora. E assim vou ensinando a aplicar essas leis em contextos da vida. O princípio da polaridade ensina que o desvio que se faz do centro para um lado se faz para o outro. Ou seja, cuidado quando temos momentos de muita excitação astral, porque depois isso pode gerar momentos de cólera. Tentar buscar uma certa serenidade, um certo equilíbrio na vida. Todos esses princípios têm aplicações práticas muito boas. Que nos ajudam a viver. Então, isso pode ser transformado em palavras muito simples, que as crianças entendem.
Quais são as principais questões filosóficas contemporâneas?
Já citei algumas. Para acrescentar: hoje nós estamos com medo de sermos engolidos pela inteligência artificial. Medo de perder o emprego, coisas desse tipo. Há muita ansiedade em relação ao aspecto econômico, do que virá, de como ficará a sociedade, como vamos sobreviver. Existe uma ansiedade terrível exatamente por conta disso, que dá uma expectativa negativa em relação ao futuro. Existe hoje uma tendência à melancolia, que pode gerar depressão. Porque as pessoas, às vezes, não encontram muito sentido para a vida. Percebem que não estão vivendo, estão só sobrevivendo. Correndo atrás de resolver coisas, pagar boletos, e não têm muito tempo para viver. Sentem um vácuo muito grande de sentido. Isso é muito pedido também. Sentem-se, às vezes, um pouco perplexos pela falta total de ética, de moral, no momento em que eles vivem. O nível de pudor que caiu demais, não só no sentido, digamos, de comportamento humano, mas mesmo naqueles que comandam os países, as autoridades. Como as coisas ficaram muito à mostra. Os defeitos morais estão muito à mostra. Ninguém mais tem preocupação em esconder. As pessoas têm uma preocupação ética legítima. Uma preocupação grande de desenvolver criatividade e inspiração para poder sobreviver a essa avalanche que está aí posta.
As coisas ficaram muito à mostra. Os defeitos morais estão muito à mostra. Ninguém mais tem preocupação em esconder.
Como a filosofia vê isso ou pode tentar ajudar as pessoas?
A visão que a filosofia tem é que nós vamos desenvolver trabalhos dentro de uma máquina, um computador, trabalhos mecânicos. Porque o computador, ainda que seja brilhante, ele não vai ter inspiração, intuição, criatividade, moral. Esse terreno é especificamente humano. Porque a gente percebe que, quando a máquina ocupa esse terreno da mecanicidade, daquilo que a simples análise combinatória de dados pode gerar, obriga o ser humano a entrar numa seara humana propriamente dita. Sair da mecanicidade. Portanto, talvez seja um impulso para que as pessoas, lógico que vai haver muito sofrimento, mas para que as pessoas assumam aquilo que é especificamente humano. Temos despertado muito as pessoas para isso: agora entrem no seu lugar como ser humano. Aquilo que só você pode aportar. É muito difícil, por mais ousados que sejamos, imaginar que uma máquina vai ter intuição, inspiração e moral. É muito complicado isso. Isso implica em uma identidade mais profunda, aquilo que normalmente se chama de alma, um elemento mais profundo. É o que é, de fato, humano. Agora, neste momento histórico em que estamos, o ser humano vai se ver obrigado a desenvolver esses atributos verdadeiramente humanos. Talvez, a longo prazo, as transformações oriundas da tecnologia, a inteligência artificial, tudo isso seja até positivo para a sociedade, muito embora, a curto prazo, esteja sendo bem assustador.
A senhora também fala sobre voluntariado social e estimula as pessoas a trabalharem a empatia e a fraternidade. O que falta à humanidade hoje?
Eu poderia dizer o que sobra, mais do que o que falta. Sobra egoísmo. Nós temos uma perspectiva nas nossas decisões que é invariavelmente muito pessoal. O que me interessa, o que me agrada, o que me traz alguma vantagem. Quando nós começamos a alargar as expectativas nas nossas decisões, vamos decidir não só em função daquilo que nos beneficia, mas em função do que beneficia um conjunto cada vez maior de pessoas, percebemos que a satisfação acaba sendo muito maior. Hoje há médicos que recomendam voluntariado para pacientes. Porque, quando o ser humano faz o bem, ele é o maior beneficiário. A sensação de bem-estar é enorme. Você começa a achar o seu lugar no mundo. Começa a se organizar do ponto de vista psicológico. Isso é maravilhoso. Então, quando a gente vai quebrando o egoísmo nas nossas decisões, a gente vai cada vez incluindo uma comunidade maior de seres humanos nos nossos laços afetivos, no nosso sentimento de família. O ideal é que um dia toda a humanidade fosse problema nosso. A gente se sentisse responsável por toda a humanidade. Esse processo acontece aos poucos, quebrando essas amarras do egoísmo. Experimentar, por exemplo, a empatia é um grande desafio. Empatia não é simplesmente se colocar no lugar do outro. É se colocar no marco psicológico do outro, vendo o mundo como ele vê a partir dos valores dele. Sem críticas, tentando entender a equação psicológica do outro. Para poder interagir com ele a partir do ponto em que ele está. E poder ajudá-lo e também ser ajudado. Porque imagine se cada ser humano que conheço me ensinasse alguma coisa. Ao longo da vida, quanta sabedoria eu reuniria. Essa empatia depende muito de eu saber que não sou dono da verdade. Ter esse ânimo de aprendiz é fundamental como pré-requisito. Aí você vira tese, antítese e síntese. A tua opinião, a opinião do outro e uma síntese em que ambos saem mais amplos, com uma visão mais ampla de vida. Então, hoje, falta combate ao egoísmo tão forte nas nossas vidas, em todas as nossas atitudes. Existe uma tradição tibetana que diz que a heresia da separatividade, que é o egoísmo, é o maior mal do mundo. E eu concordo com isso.
Hoje há médicos que recomendam voluntariado para pacientes. Porque, quando o ser humano faz o bem, ele é o maior beneficiário. A sensação de bem-estar é enorme. Você começa a achar o seu lugar no mundo. Começa a se organizar do ponto de vista psicológico. O ideal é que um dia toda a humanidade fosse problema nosso.
A senhora acha que a humanidade vai conseguir chegar lá?
Acredito que sim. Acredito na humanidade. É claro que a nossa evolução é lenta. Basta você ver como é para nós vencermos um defeito. Não é uma coisa simples. Você combate, acha que venceu, daqui a pouco o defeito está aí de novo. É complicada a evolução, não é um processo rápido. Mas, se você pega a média do que temos hoje na humanidade e compara com a média da humanidade em uma época em que Átila, rei dos hunos, jogava crianças do inimigo em covil de lobos e ficava assistindo... Isso na época, digamos assim, não era um escândalo. As pessoas aceitavam. Hoje seria um absurdo. Ou seja, em média, nós estamos crescendo um pouquinho. O processo não é rápido, mas nós estamos crescendo. Hoje já não são mais admissíveis processos de exclusão, de preconceito, que há cerca de um século eram normais. Então nós estamos evoluindo o que é possível caminhar, à velocidade em que é possível caminhar. Nós estamos evoluindo. Temos aí alguns momentos complicados, momentos de transição, como esse que a gente vive hoje, que pode nos deixar inclusive um pouco confusos. Mas, se você pega um prazo um pouco maior, há um deslocamento de consciência. Eu acredito que a humanidade vai contornar todos esses tropeços, todos esses momentos críticos, e vai continuar conseguindo, na média, ter um nível de consciência cada vez mais elevado. Trabalho para isso.