Há quem acredite que a comunicação ande em círculos: ela sempre acaba voltando para o mesmo lugar, porém em um novo lugar. Um exemplo disso são as audiosséries, histórias de ficção contadas apenas com áudio, que ganharam força nos últimos meses e promoveram um resgate das antigas radionovelas, produtos de sucesso nas décadas de 1940 e 1950, no começo do fim da chamada era de ouro do rádio no Brasil.
Agora, no entanto, as tramas chegam a outro patamar de tecnologia. Sonoplastia turbinada, efeitos sonoros mais elaborados, histórias menos rebuscadas e nomes de peso no elenco são as chaves para atrair ouvintes. Além, claro, da distribuição, que ocorre em maio à ascensão dos podcasts e em outra era de ouro: a do streaming.
“Reinvenção” é a palavra mais usada por quem está apostando em tramas do gênero. Chamadas também de audiodramas, audioteatros, podcasts de ficção e até pod-dramas, os produtos que valorizam o som ao invés da imagem se tornaram alternativa de entretenimento durante a pandemia por utilizarem menos recursos do que o visual.
Feitas de casa
Enquanto a TV e o cinema amargaram ao menos cinco meses longe dos estúdios, sobrevivendo a reprises ou a produções mais caseiras e menos profissionais, as audiosséries surgiram sem perder o nível de qualidade da transmissão e com custos bem menores.
— Já era uma tendência anterior. Aí chega a pandemia e as pessoas precisam estar afastadas. Não dá para produzir vídeo do jeito que se produzia. Com áudio, não. O ideal é gravar com todos os atores, mas, mesmo separados, dá para conectá-los ao mesmo tempo — Luiz Arthur Ferraretto, professor e coordenador do Núcleo de Estudos de Rádio da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação (Fabico) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
— Eu pensava que trabalhar com áudio seria mais fácil. Nada em audiovisual é fácil. Foi desafiador — comentou Jaqueline Vargas, que se aventurou no formato com a audiossérie #TdVaiFicar..., que estreia nesta sexta-feira (28) nas plataformas digitais.
Jaqueline tem em seu currículo séries de TV como Sessão de Terapia e Rua Augusta, mas nunca tinha trabalhando com ficção movida apenas pelo som.
— Eu quebrei um pouco a cabeça no começo, com os testes de equipamentos principalmente. Depois, tive que ouvir todas as falas isoladas para conseguir imaginar tudo aquilo junto. Meu maior esforço foi esse, o de apenas ouvir — relatou a diretora durante coletiva de lançamento da produção.
#TdVaiFicar... se passa em um futuro distópico e indesejável, com uma São Paulo abandonada e vazia por conta da pandemia. Com cinco episódios, liberados semanalmente, a história gira em torno de poucos moradores que permaneceram em um edifício. Os personagens, então, começam a criar laços e estender a mão para os vizinhos, além de terem que lidar com um acontecimento misterioso no prédio.
Para dar vida aos personagens, figuras televisivas foram chamadas para o elenco: Juliana Silveira, Paloma Bernardi, André Mattos, Ângela Vieira, Lorena Comparato e Jairo Mattos. Além de vozes já escutadas pelo público por conta de dublagens, como Isabella Guarnieri (a voz brasileira da Arya Stark em Game Of Thrones) e Nestor Chiesse (dublou atores como Hugh Grant e Gerard Butler).
— Vamos viver nossa arte da maneira que puder. De alguma maneira, vamos continuar chegando no nosso público. Esse projeto vai atingir o mundo todo. Dentro dos males que estamos vivendo, estamos ampliando a nossa maneira de ver e de viver a arte — disse Paloma.
Além de receberem aparelhos para melhorar e amplificar a qualidade do som, os atores tiveram que improvisar para fazer as gravações em casa pela falta de isolamento acústico.
— Gravei durante a madrugada, da 1h às 4h, por conta do som. Coloquei vários cobertores na parede, nas janelas, para poder gravar — contou Lorena Comparato, rindo.
Tendência de crescimento
Sofia é outro podcast de ficção, criado e lançado pelo Spotify em julho. Com sete episódios de cerca de 20 minutos, a trama fala da relação dos humanos com a tecnologia a partir de assistentes virtuais (como a Siri, da Apple, e a Alexia, da Amazon). Monica Iozzi, Otaviano Costa, Cris Vianna e Hugo Bonemer fazem parte do elenco e, por conta da caprichada mixagem de som, é praticamente impossível não reconhecer suas vozes.
Embora tenha sido lançado na quarentena, o projeto estava sendo articulado há dois anos — o que confirma a ideia de que o gênero ficcional em áudio não é novo, mas já vem sendo encarado como uma aposta no streaming.
Há também a podsérie Gilmar Baltazar, Detetive Particular, trama investigativa lançada pelo Gshow com o humorista Fernando Caruso. E o projeto independente Pytuna, podcast de ficção em formato de série feito por artistas e dubladores. A história acompanha os trabalhos de uma rádio criada para denunciar um governo autoritário.
Para Ferraretto, a tendência é de que o formato caia no gosto do público e não gere nenhuma espécie de competição com a televisão.
— As duas se encaminham para a mesma coisa, que é o assistir do jeito que eu quero, quanto eu quero e como eu quero — citou o professor, fazendo referência ao streaming.
De certa forma, produções de imagem e de som podem até caminhar juntas. É caso de Herança de Ódio, radionovela lançada pelo Gshow como uma espécie de spin-off de Êta Mundo Bom!, folhetim atualmente no ar no Vale a Pena Ver de Novo.
— O diferencial nesse momento é o nível de profissionalização, que está alto. A sonoridade também está no ritmo do nosso tempo. E tem também o lado do ouvinte, que pode criar uma espécie diferente para cada personagem — citou o professor Luiz Arthur Ferraretto.
Assim como um livro, a audiossérie também tem o poder de abrir o leque da imaginação para contemplação da história do jeito que o ouvinte quiser, sem ficar refém da imagem.
— O ator é o artista da palavra. No momento em que as pessoas querem falar, estamos proporcionando uma tentativa de melhoria da escuta. Essa coisa da imaginação é incrível — citou o ator André Mattos, da audiossérie #TdVaiFicar...