Bixa Travesty é um filme-manifesto no qual Linn da Quebrada faz bem mais do que se deixar retratar pelos diretores Claudia Priscilla e Kiko Goifmann. Artista de alta capacidade criativa e performática, Linn é a grande autora deste premiado longa-metragem (venceu o Teddy de melhor documentário no Festival de Berlim, entre outros troféus) que estreia nesta quinta-feira (28) no CineBancários e no Espaço Itaú.
A cantora assina o roteiro junto à dupla de realizadores que, com Olha pra Mim de Novo (2012), já havia documentado a vida de um personagem trans – o funcionário público Silvyo Luccio, então com 65 anos (Kiko ainda fez 33, FilmeFobia e Periscópio, e Claudia, A Destruição de Bernardet, codirigido com Pedro Marques). Em Bixa Travesty, veem-se performances da cantora entremeadas com registros de sua intimidade e discursos em um estúdio de rádio proferidos com olhar fixo para a câmera, sempre em tom de afirmação.
“O que é bixa travesty?”, Linn pergunta, antes de explicar que essa é uma autodefinição “temporária” – porque seu destino é transformar-se.
— Serei sempre um transtorno para os termos que vocês criarem — ela afirma, encarando o espectador.
O tom às vezes é de desafio, e as provocações são devidamente incorporadas pela forma do filme: a câmera se aproxima e percorre o corpo da artista sem pudor, embaralha registros mais espontâneos com encenações e, ao acompanhá-la no palco, em músicas como Enviadescer e Dedo Nocué, aproxima-se muito em algumas sequências (as melhores) como que invadindo a intimidade compartilhada entre a performer e seus fãs.
Quanto mais tem jeito de manifesto, mais intenso é o registro. Exemplar, nesse sentido, é o trecho em que Linn canta “Ela tem cara de mulher/ Ela tem corpo de mulher/ Ela tem jeito/ Tem bunda/ Tem peito/ E pau de mulher” (Mulher), deitando-se, em meio ao público, que, emocionado, sente-se representado naquele grito poético e libertário.
Linn é muito bem resolvida com o corpo e a identidade, ainda que esta seja volúvel:
— Já fui Lino. Depois, Lara. Que se libertou do Lino. Linn junta os cacos, como se fosse um espelho quebrado no qual antes se refletia o homem feito à imagem e semelhança de Deus.
A poesia nasce da consciência de sua condição. Sua força se conforma na mistura da beleza dos versos e da contundência com que são ditos – daí o acerto do tom afirmativo e ora desafiador, respaldado pelo olhar direcionado à câmera.
As palavras são importantes, mas só alcançam grande intensidade quando veiculadas pelo corpo – aquele corpo específico em performance. E ele está o tempo todo em performance. Quando olha fotografias e vídeos antigos, indica não se reconhecer em certas passagens do passado. Revê um tratamento difícil contra o câncer. Chora. Diante da câmera.
Linn parece viver o tempo todo na condição de artista, encarnando uma persona cheia de representatividade e dotada de um brilho que é emanado mesmo nos momentos comezinhos do dia a dia. É potência em pessoa. Bixa Travesty faz jus a esse poder.