Espaço dedicado ao cinema de arte, que usualmente não encontra abrigo nas salas dos shoppings, a Cinemateca Capitólio Petrobras, em Porto Alegre, recebeu um evento diferente na tarde do dia 29 de julho. Os 164 assentos e parte dos corredores ficaram lotados de pessoas do meio cultural que foram debater com representantes da prefeitura da Capital a possibilidade de terceirização do espaço cultural – e expressar sua contrariedade ao projeto. Foram três horas de conversa acalorada. Organizado pela Associação Profissional de Técnicos Cinematográficos (APTC-RS), o debate teve uma mesa integrada, entre outros, pelo secretário municipal da Cultura, Luciano Alabarse, e pelo secretário de Parcerias Estratégicas, Thiago Ribeiro. (Leia entrevista com o economista da cultura Leandro Valiati)
Política de governo da gestão de Nelson Marchezan, a parceria entre o poder público e a iniciativa privada é recebida com ceticismo por representantes do setor cultural. Receiam que os equipamentos culturais se tornem inacessíveis aos artistas locais e sejam descaracterizados, curvando-se a interesses comerciais. Já a prefeitura defende que se trata de uma alternativa de sustentabilidade em um momento de crise nas finanças públicas e que a parceria desburocratiza a gestão, garantindo manutenção e melhorias.
Entre os exemplos de gestão que inspiram a prefeitura, estão a Orquestra do Estado de São Paulo (Osesp), a Pinacoteca do Estado de São Paulo e o Museu de Arte do Rio (MAR). No modelo de contratualização, o poder público seleciona, por meio de um edital, uma Organização da Sociedade Civil (OSC) para administrar um bem público. Cabe à organização gerenciar o espaço conforme metas pré-estabelecidas, utilizando para isso a verba repassada pela prefeitura e a que eventualmente captar — mas essa receita deverá ser revertida para o equipamento. O Executivo municipal encarrega-se de propor um plano de trabalho e de fiscalizar seu cumprimento.
Ao lado dos casos de sucesso, há também polêmica. No último dia 27, a Folha de S. Paulo noticiou que o prefeito de São Paulo, Bruno Covas, demitiu a equipe da Secretaria de Cultura da capital paulista responsável pela investigação que havia apontado irregularidades nas contas do Instituto Odeon na administração do Theatro Municipal. O relatório indicou gastos superestimados em relação ao mercado, inconsistências na bilheteria e despesas inadequadas com viagens. Um dos funcionários demitidos considerou as exonerações um ato de retaliação pelo resultado da investigação. A Secretaria de Cultura disse não haver relação entre os dois fatos. O Instituto Odeon declara que "tem toda a documentação que comprova a lisura de todos os gastos e ações que tomou à frente do Theatro Municipal, seguindo os mais rígidos padrões éticos, morais e a legislação vigente". Em Porto Alegre, o Odeon elabora um novo modelo de gestão da Usina do Gasômetro, hoje fechada para reformas.
Até agora, estão em estágio avançado na Capital as contratualizações de dois equipamentos da prefeitura: o Centro Multimeios Restinga — que já tem o vencedor do edital, o Instituto Acessibilizar —, e a Pinacoteca Ruben Berta, que deve ter seu edital lançado em breve. Alabarse afirma que todos os espaços culturais da prefeitura são passíveis de contratualização:
— Como isso é um plano de governo, tudo está no radar. Mas sempre obedecendo a um processo de análise, estudo, viabilidade econômica. A ideia de que há recursos financeiros para atender a todos os equipamentos da coisa pública sem descobrir novas fórmulas não corresponde à atual realidade financeira dos municípios.
Para o secretário de Cultura, parte da resistência do setor cultural está na ideia segundo a qual a contratualização seria uma forma de privatizar espaços públicos.
— Uma coisa não tem nada a ver com a outra. A contratualização nem de longe passa pela ideia de vender equipamentos. Nada mais é do que uma proposta de parceria entre o poder público e organizações civis. Não deveria causar tanta polêmica — diz Alabarse, que também é diretor teatral e idealizador do longevo festival Porto Alegre em Cena.
Uma das entidades críticas é o Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos e Diversões (Sated-RS).
— Sabemos que não é privatizar. É passar a administração para a iniciativa privada — diz o presidente, Fabio Cunha. — Mas nosso medo é fecharem contratos equivocados por um período de 10 anos.
Cunha se refere à experiência da prefeitura com a concessão do Auditório Araújo Vianna à Opus Promoções, empresa escolhida por licitação para reformar o espaço e administrá-lo por 10 anos. O edital de 2007 determinou que 25% das datas deveriam ser reservadas a eventos da Secretaria Municipal da Cultura. Para o presidente do Sated-RS, a locação do Araújo Vianna nas datas da prefeitura se tornou cara para os artistas locais.
"Outro desmonte", reclama atriz
Com o final do contrato com a Opus, a prefeitura está selecionando, por meio de concorrência pública, a empresa que vai administrar o Araújo Vianna nos próximos 10 anos, conjuntamente com o Teatro de Câmara, fechado desde 2014. O edital determina à vencedora a restauração do Araújo Vianna e a reforma do Teatro de Câmara. Por prever obras de grande porte, a concessão é uma ferramenta de parceria diferente da contratualização, esta focada em serviços e pequenas melhorias dos espaços. A prefeitura poderá utilizar 30 datas por ano do Araújo e 50% das datas do Câmara.
— Não sabemos se os artistas locais terão de pagar um valor inacessível para usar o Câmara, nem se o poder público vai manter os editais de ocupação que tinha antes — questiona Cunha. — Essa é também a nossa preocupação com o Teatro Elis Regina (na Usina do Gasômetro), com o Teatro Renascença e com a Sala Álvaro Moreyra (ambos no Centro Municipal de Cultura). Como serão os mecanismos de acesso ao artista local?
O presidente do Sated-RS também manifesta preocupação quanto à possibilidade de os espaços serem administrados por empresas de outros Estados, sem familiaridade com a realidade da Capital. Como alternativa, sugere parcerias com grupos locais:
— O poder público poderia ceder os espaços para artistas daqui, como era o caso do Usina das Artes (projeto de ocupação de salas da Usina do Gasômetro por grupos locais, depois alocados em uma casa na Rua Santa Terezinha). Era um espaço cedido por um ano à iniciativa privada, que eram os grupos teatrais.
Outra voz crítica é da atriz Deborah Finocchiaro, da peça Pois É, Vizinha...:
— Será mais um desmonte, mais uma forma de nos afastar da arte, de elitizar a cultura. Será mais uma forma de nos desmantelar, nos fragmentar, enfraquecer, justamente nesse momento tão delicado, em que a cultura está sendo ameaçada de todas as formas.
Deborah integra a MOVE, rede com centenas de artistas de Porto Alegre que se reuniram para articular soluções de valorização da cultura local, e cobra colaboração:
— É preciso haver envolvimento e interesse por parte da prefeitura. Que haja um comprometimento real em relação aos artistas, aos nossos produtos culturais, à expansão do público. Temos de manter diálogos e construções conjuntas.
Alabarse rebate as críticas argumentando que o contexto do setor público exige novas soluções. Para ele, as dificuldades na manutenção dos equipamentos culturais é sintoma da insuficiência do atual modelo:
— Os tempos trazem mudanças. Sou diretor de teatro e, se eu quisesse fazer teatro como na década de 1960, minha arte seria ultrapassada. Na política brasileira, houve mudanças profundas nos últimos 50 anos. Muita coisa deu errado. Tanto se fala na deterioração dos prédios públicos da cultura, mas o que queremos? Fazer de conta que há recursos para manter esses prédios como merecem? Quero ver se esse modelo de parcerias funciona ou não.
Prevendo contratos de dois a cinco anos para as contratualizações, o secretário diz que o medo de que os espaços se tornem inacessíveis aos artistas locais é infundado:
— Todos os serviços serão mantidos. O Câmara é um equipamento destinado a escoar a produção local, como sempre foi. Isso quer dizer que vamos cobrar R$ 3 mil reais pelo aluguel? Não. Vamos manter o mesmo padrão dos outros teatros da prefeitura. O aluguel custará o equivalente ao valor de quatro ou cinco ingressos, conforme o preço estabelecido pelos grupos.
Alabarse afirma que os servidores dos equipamentos culturais contratualizados não serão demitidos, mas poderão ser deslocados para outros setores da prefeitura:
— Nenhum servidor perderá seu status de servidor.
A polêmica sobre o Capitólio
A audiência pública do final de julho não foi o primeiro debate sobre terceirização na Cinemateca Capitólio Petrobras. Há dois anos, ocorreu lá o seminário O Terceiro Setor na Gestão da Cultura, realizado pela prefeitura em parceria com o Instituto Odeon e com o CAF — Banco de Desenvolvimento da América Latina, respectivamente a empresa que presta consultoria para o modelo de gestão da Usina e o órgão que está financiando a reforma do equipamento cultural. No evento de 2017, foram apresentados cases de parcerias entre o poder público e organizações sociais.
Desde então, a ideia de contratualizar a gestão do Capitólio virou objeto de controvérsia. Hoje, a Cinemateca é administrada pela prefeitura em parceria com a Fundação Cinema RS (Fundacine), instituição privada sem fins lucrativos. O convênio captou R$ 4 milhões da Petrobras e R$ 1 milhão do BNDES que permitiram o restauro e a reabertura do prédio histórico em 2015, depois de 10 anos de obras.
A Petrobras, que empresta seu nome ao espaço, tem um contrato de patrocínio de R$ 590 mil, por meio da Lei de Incentivo à Cultura (Rouanet), dos quais já foram pagos R$ 354 mil. Mas o contrato acaba em 26 de novembro. A estatal, que tem cortado verba para projetos culturais, não informa se será renovado ou não, gerando incerteza sobre o futuro do Capitólio. O presidente da Fundacine, Beto Rodrigues, encara "com pragmatismo" a contratualização e está se preparando para atuar como uma Organização da Sociedade Civil:
— Mesmo não tendo, ainda, uma comunicação formal sobre possíveis alterações no sistema de convênio e parceria que temos, já sabemos que muito possivelmente a Cinemateca estará entre os espaços culturais municipais a serem terceirizados. Nossa entidade tem interesse em participar do edital. Mas também esperamos que esse edital, se lançado, seja realista quanto aos custos básicos de manutenção e ao que deve ser oferecido como contrapartida financeira à OSC que vier a geri-lo.
Ex-coordenador de Cinema, Vídeo e Fotografia da prefeitura e técnico em cultura no Capitólio, Marcus Mello critica a ideia de levar a lógica da iniciativa privada para instituições públicas:
— São duas coisas distintas. Gerir um espaço público não é a mesma coisa que gerir um espaço privado. Além disso, passamos os primeiros anos desta gestão ouvindo que não havia recursos e, de repente, surge dinheiro para repassar a entes privados?
Mello ressalta a importância do acervo de filmes e documentos:
— Ficamos sabendo que o projeto não é contratualizar a Cinemateca como um todo, apenas a sala de cinema. Mas nossa luta sempre foi para reafirmar que o Capitólio é mais do que uma sala de exibição. É um espaço de preservação e difusão do cinema feito no Rio Grande do Sul. Não queremos que aconteça aqui o que ocorreu na Cinemateca Brasileira (em São Paulo), que recebeu uma feira de vinhos.
O secretário de Parcerias Estratégicas, Thiago Ribeiro, nega contradição no discurso da prefeitura sobre as finanças públicas:
— Quando o prefeito Marchezan assumiu, a situação fiscal era muito delicada, o que exigiu medidas impopulares de saneamento. Agora, a prefeitura atingiu novamente índices de saúde financeira que permitiram voltar a tomar financiamentos do governo federal e de instituições não governamentais para investir na cidade.
Ribeiro assegura que não haverá uma ruptura na gestão do Capitólio e que o projeto de contratualização visará ao equipamento como um todo:
— Haverá espaço na gestão para todas as pessoas que estão realizando um bom trabalho.
O futuro da Usina do Gasômetro
Um dos espaços culturais mais icônicos de Porto Alegre, a Usina do Gasômetro está fechada para reforma desde novembro de 2017. Até agora, foram realizados no local estudos para a elaboração do projeto, assinado pela empresa 3C Arquitetura e Urbanismo. De um orçamento inicial de R$ 40 milhões, o projeto foi readequado para R$ 12,5 milhões, que serão financiados com cerca de R$ 10 milhões do CAF e R$ 2,5 milhões da prefeitura. Depois de muita expectativa, o edital para a execução da obra de revitalização foi lançado no último dia 26.
Para realizar um estudo de modelo de gestão para a Usina, o Instituto Odeon se baseou em entrevistas com representantes de outras instituições culturais, usuários e ex-gestores, além de uma pesquisa realizada pela consultoria JLeiva. Para o secretário de Cultura, Luciano Alabarse, o Gasômetro tem de “voltar a ser um centro plural de cultura”:
— Fui diretor da Usina durante quatro anos e tenho excelentes lembranças. Todas as linguagens aconteciam ali. O Porto Alegre em Cena fazia espetáculos, a sala 209 recebia simpósios, havia shows de música no terraço.
Ainda não há uma decisão sobre o retorno ou não dos grupos do projeto de residência artística Usina das Artes ao espaço onde nasceu, segundo Alabarse. Desde que tiveram de deixar o Gasômetro, os coletivos reclamam das condições de trabalho e segurança no prédio na Rua Santa Terezinha, perto da Vila Planetário, onde foram realocados. Reivindicam o retorno ao Gasômetro e a continuidade do prédio da Santa Terezinha como novo espaço cultural. Alabarse afirma:
— A lei do projeto não obriga que seja na Usina. A existência do projeto não está em discussão, ninguém está dizendo que vai acabar. Estamos só estudando se volta ou não para a Usina, mas a inclinação é que não volte.
Um dos próximos editais de contratualização deverá ser o da Pinacoteca Ruben Berta, em um casarão do século 19 na Rua Duque de Caxias. Seu acervo de 125 obras de artistas nacionais e internacionais, doado por Assis Chateaubriand, inclui trabalhos assinados por Di Cavalcanti, Portinari e Tomie Ohtake. A coordenadora de Artes Plásticas da prefeitura, Adriana Boff, adianta que o edital, ainda sem data de lançamento, será pelo período de cinco anos. Um dos objetivos é constituir uma equipe especializada:
— Temos aqui um equipamento museológico, mas não uma equipe de museu. Não temos museólogo, coordenador educativo, produtor, diretor. Propomos essa equipe no projeto de contratualização para ter uma boa gestão.
Outra meta é dinamizar a programação cultural, ampliando o horário de funcionamento para fazer atividades complementares e, quem sabe, tornar viável o café da Pinacoteca, hoje fora de operação.
O repasse anual da prefeitura será de R$ 946,66 mil, incluindo folha de pagamento, manutenção e investimentos. A organização parceira deverá levantar verba para atividades e poderá explorar o café e o pátio, com receita revertida para a Pinacoteca.