A possibilidade de cortes de patrocínios de estatais que têm sido historicamente alguns dos principais apoiadores da economia criativa no Brasil está levando agentes culturais a se preocuparem com o futuro do setor. Em 7 de fevereiro, o presidente Jair Bolsonaro afirmou nas redes sociais reconhecer "o valor da cultura e a necessidade de incentivá-la, mas isso não deve estar a cargo de uma petrolífera estatal", em referência à Petrobras. Disse ter determinado uma "reavaliação dos contratos" e que "o Estado tem maiores prioridades".
Especulações sobre mudanças nas políticas de patrocínios das estatais agora ocupam a arena pública. Oficialmente, ainda há pouca informação disponível. Por meio de nota, a Petrobras informa apenas que "está revisando sua política de patrocínios, em alinhamento ao novo posicionamento de marca da empresa, com foco em ciência e tecnologia e educação, principalmente infantil" e que os contratos vigentes "estão com seus desembolsos em dia". O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), também em nota, informa estar "em fase de revisão estratégica de suas ações de comunicação, incluindo o patrocínio cultural".
De concreto, há o fim da parceria com o projeto Sessão Vitrine Petrobras, que realiza sessões de filmes brasileiros em mais de 20 cidades, incluindo Porto Alegre. A página do projeto no Facebook informa que a renovação do patrocínio foi suspensa e que seus organizadores agora buscam novos parceiros para dar prosseguimento às atividades. A Petrobras confirma que não houve renovação.
Em outro caso, a Caixa encerrou a parceria com o cinema de rua Caixa Belas Artes, em São Paulo, e solicitou a retirada da marca do nome do espaço cultural. Em nota, o banco afirma que os novos contratos e aqueles ainda vigentes "estão sob análise, e as tratativas relacionadas aos projetos culturais e seus desdobramentos são tratadas caso a caso diretamente com os proponentes ou patrocinados". Outro cinema paulista, o Cinearte, viu seu contrato com a Petrobras não ser renovado neste mês de março.
A sensação entre gestores de alguns dos mais representativos projetos culturais do Rio Grande do Sul ouvidos para esta reportagem é de incerteza. Há um consenso de que cortes expressivos nas verbas de estatais deixariam feridas, levando à redução de orçamentos, mas também há a convicção de que alternativas seriam estudadas para garantir a continuidade das iniciativas.
O dinheiro público investido retorna em cultura, pensamento, identidade e também em PIB, postos de trabalho, turismo e ganhos de produtividade para além de outros setores.
LEANDRO VALIATI
Economista
De alguma forma, isso já vem sendo feito. Os números mostram que projetos culturais têm reduzido seus orçamentos nos últimos anos, acompanhando a retração nos patrocínios públicos e privados provocada pela crise econômica no país. A verba anual da Petrobras para a cultura, por exemplo, caiu de R$ 142 milhões em 2009 para R$ 39 milhões em 2018.
Para o economista Leandro Valiati, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o investimento na economia criativa não retorna à sociedade apenas na forma de produtos culturais, mas também gera efeitos econômicos:
— O dinheiro público investido retorna em cultura, pensamento, identidade e também em PIB, postos de trabalho, turismo e ganhos de produtividade para além de outros setores, o que significa que perderíamos muito mais do que o produto cultural em si.
Valiati afirma que, no cenário internacional, "setores estratégicos sempre possuem apoio de governos":
— Em um país-marco do liberalismo, a Inglaterra, existem recursos diretos por seleção pública, um grande percentual da loteria federal e um portfólio de projetos que são entendidos como de valor cultural recebem recursos diretos em ciclos de três anos, além de os museus federais serem gratuitos. Na França, que tem historicamente o Estado mais forte, a cultura é estratégica para o comércio internacional, a proteção a linguagens e a mercados locais e também à democracia, mas sem deixar de ser um elemento estratégico do PIB do país.
Os investimentos nessa área, no Brasil, têm trazido retornos em termos de impostos.
FÁBIO DE SÁ CESNIK
Advogado especialista em incentivo à cultura
A pergunta de um milhão de dólares é: frente a um recuo significativo nos patrocínios estatais, a iniciativa privada ocuparia o espaço no financiamento à cultura? O advogado Fábio de Sá Cesnik, sócio da CQS Advogados e autor do Guia do Incentivo à Cultura (Manole), responde:
— Quero acreditar que as empresas privadas vão tentar garantir essa oportunidade, mas sem dúvida cortes constituiriam uma perda.
Embora as estatais não invistam em cultura apenas por meio da Lei Rouanet, os dados do principal mecanismo de incentivo à cultura no país dão uma dimensão da participação no setor. Entre 1994 e 2018, a Petrobras foi responsável por 10,10% dos incentivos via Lei Rouanet, e o BNDES, por 2,88%.
— Quando observamos indicadores econômicos, os números da cultura são todos muito positivos — acrescenta Cesnik. — Os investimentos nessa área, no Brasil, têm trazido retornos em termos de impostos. Acho que o único risco (de haver cortes significativos) seria devido a algum tipo de preconceito em relação à arte mas, para mim, isso já seria uma explicação especulativa demais.
O ator Odilon Wagner, integrante do Fórum Brasileiro pelos Direitos Culturais, acredita que a cultura conseguiria resistir a cortes de verbas estatais, mas adverte que isso aumentaria o "canibalismo":
— Todo mundo começaria a buscar os mesmos patrocinadores, o que seria muito preocupante. Por exemplo, a área do cinema tem a Petrobras investindo pesadamente. Se de repente ela para, o que o cinema faz? Vai para os mesmos outros patrocinadores. A mesma coisa aconteceria com outras áreas, como o teatro e a música.
Questionada pela reportagem sobre a política de patrocínios culturais das estatais, a Secretaria Especial da Cultura, vinculada ao Ministério da Cidadania, informa que "uma das prioridades da gestão atual é equilibrar o investimento cultural das empresas estatais em áreas e projetos que beneficiem a parcela mais vulnerável da população, proporcionando mais acesso à cultura e ao esporte". Segundo o texto enviado a ZH, o ministro da Cidadania, Osmar Terra, e o secretário da Cultura, Henrique Pires, "têm conversado diretamente com as estatais para definir uma melhor destinação dos recursos à lei de incentivo à cultura e a programas da pasta do esporte".
Há uma sutileza quando se fala em "patrocínio cultural". O BNDES, por exemplo, não inclui nessa categoria — que é considerada pelo banco uma estratégia de comunicação — seu edital de cinema, o apoio ao patrimônio cultural brasileiro e o seu espaço cultural no Rio de Janeiro. Uma novidade que visa a incentivar a cultura, mas não é tida especificamente como "patrocínio cultural", é a iniciativa por meio da qual o BNDES espera apoiar até 80 projetos entre 2019 e 2020. No Programa Matchfunding de Cultura BNDES, o banco aportará R$ 2 para cada R$ 1 arrecadado em crowdfunding realizado em parceria com a Benfeitoria e a Sitawi Finanças do Bem. Serão enfocados projetos entre R$ 30 mil e R$ 300 mil. Assim, o BNDES poderá investir até R$ 4 milhões, e os recursos totais poderão chegar a R$ 6 milhões.
Não apenas as dúvidas quanto ao futuro, mas também a crise econômica dos últimos anos tem provocado os gestores culturais a buscarem alternativas de financiamento. Uma delas, empregada há tempos no Exterior, está mais próxima da realidade do Brasil. Em janeiro, foi sancionada a lei dos fundos patrimoniais (ou fundos de endowment), em que as instituições retiram apenas parte do rendimento para as suas despesas, deixando o investimento principal intocado. Para que seja possível investir em fundos de endowment com benefício de incentivos fiscais, segundo a Secretaria Especial da Cultura do governo federal, ainda é necessária uma regulamentação específica. Fernando Schüler, professor do Insper, afirma que esse é um debate que completa pelo menos 15 anos no país:
Ele (o fundo de endowment) protege contra oscilações de mercado, dá uma visão de sustentabilidade de longo prazo à instituição e reduz a dependência de patrocínios estatais.
FERNANDO SCHÜLER
Professor do Insper
— Às vezes, as pessoas perguntam: "Como é possível que o MoMA e o Metropolitan (museus norte-americanos) tenham tantos recursos para realizar exposições de alto custo?". A resposta é o endowment. Ele protege contra oscilações de mercado, dá uma visão de sustentabilidade de longo prazo à instituição e reduz a dependência de patrocínios estatais.
No Rio Grande do Sul, a Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (Ospa) e a Fundação Iberê Camargo (FIC) têm projetos para a constituição de fundos patrimoniais. A meta da FIC é captar R$ 50 milhões para custear despesas fixas. Outra alternativa estudada pela Fundação é a instalação, orçada em aproximadamente R$ 1 milhão, de placas solares que oportunizariam uma economia de quase R$ 100 mil mensais com energia.
— O endowment é o melhor caminho para um futuro seguro para algumas instituições — avalia Emilio Kalil, superintendente da FIC. – É a garantia de sustentabilidade para tudo o que é básico na casa, como manutenção do prédio, segurança, funcionários e manutenção do acervo. Para trazer grandes exposições, buscaríamos patrocínios específicos.
Fundo patrimonial, financiamento coletivo ou iniciativa privada? Nenhuma alternativa de financiamento deve ser descartada, na opinião de Leandro Valiati:
— Nenhuma alternativa de financiamento e tampouco as ações em busca de público. Todas essas opções são válidas e precisam ser incentivadas mesmo em momentos de fartura de investimento público. Deve haver uma complementaridade. Uma dependência muito grande de recurso público direto ou indireto deixa o segmento muito vulnerável.
Leia a segunda parte desta reportagem: