Nesta entrevista, o professor de Economia e criador do Núcleo de Estudos em Economia Cultural e Criativa da UFRGS (NECCULT) Leandro Valiati analisa a ideia de terceirizar a gestão de espaços culturais, experiência em curso na prefeitura de Porto Alegre.
Em que situações a terceirização na cultura é recomendada?
Trata-se de encontrar um novo caminho para fazer a gestão de um bem cultural. Como instrumento, é neutro, ou seja, não é necessariamente positivo ou negativo. Tudo depende de como essa ferramenta será usada. Não só no Brasil como no mundo, os recursos financeiros para a cultura são sempre um gargalo. Tem que produzir algum tipo de gestão e financiamento eficiente, que permita que as coisas continuem funcionando, mas sempre tendo noção de que a cultura não é um mercado comum, como o de energia ou agricultura. É um mercado diferente. Tem valores substantivos e são bens públicos. Sabendo que a terceirização ou a criação de novos mecanismos de gestão são simplesmente ferramentas, acho que o Estado e a sociedade precisam discutir essas novas formas, dado o problema claro de subfinanciamento à cultura, em especial no Brasil nesse momento.
Como chegamos a esse momento?
Há uma crise no sistema como um todo, sobretudo das ferramentas que viemos utilizando até agora. O sistema da Lei Rouanet, dos fundos, o sistema de financiamento público e privado do qual Brasil lançou mão nas últimas décadas entrou em colapso. Infelizmente, esse colapso aconteceu num governo que não valoriza a cultura, que não a tem como prioridade. Então, você soma um governo que não tem a cultura com prioridade, que entende a cultura como uma área sem importância e muitas vezes ataca a cultura, a um contexto em que você tem um colapso estrutural do sistema de financiamento que vem de algumas décadas. Temos, então, a tempestade perfeita, o pior momento possível.
Daí a necessidade de repensar o financiamento?
Hoje, é de extrema importância refletir sobre novas ferramentas para que a gente consiga, no final, ter o grande objetivo da sociedade no que toca à cultura, que é diversidade. Uma produção de bens culturais que atendam aos anseios da sociedade, ou seja, para todos: para aqueles que gostam de cultura alternativa, popular, música clássica, todos os espectros. Assumindo que a cultura é um bem público que transforma a sociedade e é um ativo econômico de extrema importância. Portanto, gosto de ver a sociedade e os governos discutindo alternativas. Agora, temos que olhar bem para essas alternativas.
Qual é a reflexão sobre Porto Alegre?
Seria muito importante ter um projeto. E um projeto de regulação para a cultura precisa ter uma série de elementos. Essa cessão de espaços e equipamentos culturais precisa estar conectada a um projeto maior que olhe para todo o mecanismo de difusão da cultura, que olhe para mecanismos de fomento para a ocupação democrática desses espaços e consiga perceber que está se falando de um ecossistema. Esses equipamentos culturais deveriam pertencer a um ecossistema. Deveria se planejar um ecossistema de produção e consumo de cultura em Porto Alegre. A ideia de sistema é o primeiro passo. Aí a prefeitura atua como o grande cérebro dessa operação. Isso é fundamental porque a sociedade fala por meio da prefeitura, pelo menos em tese. Não vejo grandes problemas de o Estado deixar de ser o executor da política cultural e passar a ser o regulador, desde que essa regulação seja efetiva e pensada.
Como é no Exterior?
Tenho trabalhado muito na Inglaterra. O caso dos museus e alguns centros culturais de Londres são paradigmáticos nessas novas formas de gestão. A Tate Modern, uma galeria de arte importante, por exemplo. A entrada é gratuita, você só paga para ver exposições especiais. Ela recebe dinheiro público, mas toda a gestão é feita por uma organização que tem liberdade operacional completa. O Museu d'Orsay, em Paris, é a mesma coisa. É uma forma de resolver muitos custos burocráticos e também de atrair investimentos externos. A Tate recebe muitos investimentos externos, de fundos a doações privadas. Tudo isso fica mais facilitado se os doadores puderem ter uma relação direta com o equipamento cultural para o qual estão doando, e não doar para o governo eventualmente transferir esse dinheiro. Qualquer gestor público no Brasil realmente enfrenta uma carga burocrática administrativa que quase inviabiliza o trabalho. Fiz um longo estudo sobre a cadeia econômica dos museus no Brasil: a gestão do dia a dia fica prejudicada com uma série de entraves burocráticos. Às vezes, os recursos até existem no mercado privado, mas não conseguem chegar na atividade fim. Então, sim, fazendo esse tipo de ação, você ganha eficiência, com certeza. Mas essa eficiência precisa ser espelhada em usos democráticos dos espaços.
Garantir esse equilíbrio seria o papel da prefeitura?
O grande papel da prefeitura de Porto Alegre é ser um pêndulo, um agente que vai dar equilíbrio entre eficiência operacional e democratização e diversidade. É possível fazer. É preferível você pensar no futuro e com esse tipo de ação do que ver equipamentos culturais morrendo por falta de recursos.
Como você vê o receio de que artistas locais fiquem alijados?
É um risco, mas é um risco que não inviabiliza o projeto, na minha visão. É um risco a ser contabilizado, e a prefeitura tem de criar maneiras de inserir os artistas locais e outros públicos mais frágeis nessa relação com o mercado. Inserir tanto os artistas, no âmbito da produção, como o público, no âmbito do consumo. Quando se fala em parceria público-privada, você tem de criar uma balança em que vai tentar equilibrar dois níveis de interesse, o público e privado. Se um dos dois estiver em desequilíbrio, alguém vai sair perdendo: sociedade ou o mercado. E o mercado, em geral, não sai perdendo, porque ele nem entraria nesse tipo de negócio (se estiver desequilibrado em detrimento dele). Eis o grande papel da prefeitura como reguladora. Vai ter que encontrar mecanismos de criar diversidade. Com esse norte, você tem uma regulação supersaudável. Pode parecer delírio, mas a Usina poderia virar nossa Tate Modern, até pela localização geográfica. Até pelo espaço parecido. Mas você precisa preencher com uso, e isso custa caro. Trazer a iniciativa privada é fundamental.
Além do ganho em eficiência, quais são os outros benefícios?
Você pode criar projetos mais estáveis ao longo do tempo, que não dependem de um governo. As organizações podem criar mecanismos de atração de recursos: por crowdfunding, por contato com investidores, por doações. Há mais autonomia na construção de uma política para um espaço que não depende necessariamente de um governo ou de contingenciamento financeiro.
E quais os riscos da terceirização?
É você perder o sentido público daquele equipamento. Para isso, a prefeitura tem de criar mecanismos de regulação e controle. Tem inúmeros mecanismos. Pode exigir que um número mínimo de atividades gratuitas seja executado mensalmente. Pode exigir que a cada ação de captação de recursos que a OS (Organização Social) faça, você tenha um percentual para a formação de público de baixa renda. Eu poderia ficar horas listando possíveis mecanismos de controle. Com uma boa regulação, você pode criar um equilíbrio em que a sociedade ganhe e as empresas ganhem também. No caso da cessão da gestão, você cria um pouco mais de estabilidade na gestão. Uma das coisas mais terríveis que acontecem em grandes equipamentos totalmente administrados pelo poder público no Brasil é que, a cada troca de governo, troca toda a equipe de gestão, acabam-se os planos e se começa do zero. Além disso, você tem que aprimorar os mecanismos de controle. Por exemplo, se você vai prever que essas OSs precisam ter atividades gratuitas, precisa checar se estão realmente sendo implementadas na grade de maneira correta. É criar uma carga fiscalizatória importante. Mas acho que compensa.