Na sala de casa, em um bairro de classe média de Esteio, Alice Baltezam está inquieta. A descrição detalhada da rotina, fornecida pela mãe, Chaiane Alves Dos Santos, 34 anos, definitivamente não combina com ela. A menina entra e sai do quarto, quer mostrar brinquedos, faz piadas, ri. Interrompe a mãe para contar sua versão da história, mas se perde nas datas e acaba deixando Chaiane completar o raciocínio.
- Ela é assim o tempo todo, muito elétrica. A Alice dos vídeos é a mesma que temos aqui em casa - explica a técnica em enfermagem, que está afastada do trabalho em razão da esclerose múltipla, diagnóstico recebido há quatro anos.
Filha única, a menina deu início à carreira de modelo aos quatro anos. A decisão de ingressar em uma agência foi tomada pelos pais após ouvirem muitos elogios à pequena.
- Todo mundo dizia: "Ela é linda, que fofinha, tem de colocar em agência" - relembra Chaiane.
Com o rosto nos catálogos, Alice foi convidada a participar de uma seleção do canal do YouTube Janela da Rua. Nos vídeos, pessoas de diferentes idades reagem e opinam sobre diversos temas. A participação da guria ganhou elogios, o que despertou na família a ideia de Alice ter um canal só seu. Foi assim que, há dois anos, nasceu o Hora da Alice.
- Toda a família ajudou. Minha tia fez a vinheta, minha mãe e meu pai me ajudam a pensar em tudo. O Luba (youtuber do canal LubaTV) foi minha inspiração - conta a garota.
Chaiane virou um misto de mãe, empresária, fotógrafa e assessora. Leandro, o pai, divide-se entre o trabalho como instalador de telefones e motorista da filha, que está sempre circulando para tirar fotos e gravar vídeos ou participar de eventos. Na semana em que foi visitada por GaúchaZH, a agenda estava cheia, com festa, visita a parceiros, gravação de vídeo para o canal, conteúdos diários para o Instagram, aula de dança, inglês e violão, além da escola.
A segunda-feira começou com um encontro promovido por uma blogueira no shopping Bourbon Country, em Porto Alegre. Por isso, a tarde foi gasta no salão de beleza de Canoas que é parceiro de Alice. As permutas são comuns nesse universo: quando um influenciador ainda está firmando seu nome, é interessante trocar posts e referências a marcas nas redes sociais por produtos e serviços.
- Há blogueiras que me disseram para não aceitar, mas acho que precisamos. Se não, não fazemos nada, não entramos no circuito - explica Chaiane, que já garimpou mais de 10 parceiros para a filha, de restaurantes a lojas de roupa.
Depois de terminar os cachos e a maquiagem, é a hora da foto e do vídeo com a cabeleireira para postar no Instagram. Alice pega o celular, sai falando e aproveita para incluir o dono do salão no vídeo. É rápida. Precisa ser: já são quase 17h, e ela ainda tem de trocar roupa em casa _ a família quer estar em Porto Alegre às 19h, no início do evento.
O look escolhido é composto por peças recebidas de parceiros. As fotos e os vídeos são gravados a todo instante, sem pausa: no salão, em casa, no carro (enquanto terminam de arrumá-la), na chegada à festa _ tudo para os fãs acompanharem de perto a rotina da miniestrela.
Mesmo aparentando certo cansaço, Alice estampa um sorriso no rosto e entra no salão do restaurante que sedia o encontro.
Chaiane aproveita para fazer os primeiros posts nas redes sociais.
- Faz um stories com a Mari (Mariana Wofchuk, blogueira que promove o evento) - instrui a mãe.
Alice parece zonza com tanta gente e tantos flashes. Para em uma estação com maquiadoras e vira o foco das câmeras, o que a obriga a seguir sorrindo. Depois, faz tranças no cabelo, o que motiva um comentário da mãe, ao pé do ouvido da repórter:
- Na verdade, ela não gosta muito de tranças. Mas, se precisar fazer, ela vai lá e faz. É uma guria muito boa.
A função acaba por volta da meia-noite. A família chega em casa exausta.
- É uma correria, mas temos de apoiar - reforça o pai.
"Fazendo os recebidos"
Como a agenda de Alice está cada vez mais corrida, a família instituiu que domingo é o dia do descanso. É o momento de ficar de pijama e ver filme, sem compromissos - está liberado, no máximo, um ou outro vídeo curto sobre o que estão vendo na TV. Também é no fim de semana que a garota cozinha - Alice é uma entusiasta das panelas. Experimentamos a boa mão da pequena para o doce em plena terça-feira: como quer agradar aos convidados, ela decide fazer uma cuca. Tira do armário o avental e a touca, visual que usa para gravar os vídeos de culinária. Enquanto deixa o doce no forno, vai para o quarto e dá início a um conteúdo que você já deve ter visto no Instagram de famosos: o vídeo dos "recebidos", momento no qual se mostram os presentes que chegaram pelo correio. São sete sacolas e uma caixa grande espalhadas pela cama.
- Oi, galerinha! Agora vou fazer os recebidos - explica Alice, quando é interrompida pela mãe:
- Filha, tu esqueceu de dar bom dia para os seguidores. Hoje tu ainda não deu. Grava de novo.
Chaiane relembra quais são os nomes dos parceiros para a menina frisar durante o vídeo. E faz papel de diretora: pede para Alice repetir quando acha necessário, sugere novas frases e é sincera quando a filha não parece simpática. A abertura do primeiro presente foi gravada nove vezes. Se Alice estava descontente com as repetições, o semblante mudou quando descobriu o que havia dentro das caixas. Laços, pantufas, meias, camisetas, estojo, canetas...
- Agora vou divar - brincou.
O perfil no Instagram acabou se tornando mais relevante para a menina do que o próprio canal no YouTube.
No Hora da Alice, os conteúdos com mais audiência geralmente são as "collabs", os vídeos em conjunto com outros youtubers. A garota já gravou com nomes como Luba, Julio Cocielo, Bibi Tatto, Gabbie Fadel, Muca Muriçoca, MoriMura e Everson Zoio, resultado das investidas da mãe como produtora. Já no Instagram, por não precisarem de edição, os vídeos são postados de forma mais ágil, e o retorno dos fãs é imediato.
- Não sei editar. A Alice também não. Quando parei de trabalhar, o médico disse: "Quem sabe tu usa o negócio da tua filha como uma terapia para ti?". Porque tenho de ter a memória ativa, mexer no computador. Mas, hoje, achamos melhor contratar alguém para editar os vídeos - explica Chaiane.
A mãe capta as imagens. A meta é postar pelo menos um vídeo por semana. Na manhã de quarta-feira, Alice se prepara para ensinar as crianças a fazer roupas para bonecas com um balão. A avó, que domina a técnica, a ajuda a pensar nos modelos. Elas levam o aparador da sala para o quarto, e Chaiane posiciona a câmera. Alice tenta convencer a avó a aparecer no vídeo, mas ela não quer.
Na gravação, a garota tenta criar os looks. A mãe busca dar umas dicas, mas o negócio demora um pouco a engrenar.
- Não vão entender o que tu está explicando, Alice - avisa a mãe.
- Estou achando que esse vídeo vai ficar chato - opina a menina.
Chaiane insiste. No meio da discussão, comenta:
- Ela é muito agitada. É difícil fazer vídeos mais parados.
Alice termina o vídeo. E a mãe intervém novamente:
_ Não esquece de falar para te seguirem nas redes sociais.
O quarto fica uma bagunça, com pedaços de balões para todo lado. E é na limpeza que Alice parece se divertir mais: pega uma vassoura, coloca um funk e vai dançando e varrendo. Pergunto se o mais chato em ser influenciadora é gravar vídeos quando não se está a fim. Ela pensa por alguns segundos e responde:
- Acho que o mais legal e o mais chato andam juntos. É legal ter fãs, mas alguns querem atenção o tempo todo. Responder a toda a hora é chato, tem gente insistente. Mas gosto do carinho deles.
E não são só os fãs que demandam energia de Alice. Na escola estadual onde cursa o 4º ano, ela é conhecida pelos alunos mais velhos, ganha carta de fãs e costuma ser o centro das atenções.
- Todo mundo adora ela. Os adolescentes falam com ela, sabem que ela é youtuber. Eu gosto mais do Instagram: tem muita foto bonita - conta Manuella Platte, nove anos.
A colega Rafaela Guedes continua:
- Às vezes, a Alice falta um pouco as aulas. Mas é normal, né, ela tem muitos compromissos.
As professoras elogiam o desempenho de Alice na escola.
Mas, de fato, ela tem muitos compromissos As lojas e marcas parceiras requerem atenção. Para manter uma relação próxima, as visitas aos estabelecimentos são praticamente semanais, sempre documentadas nas redes sociais. Na quinta-feira daquela semana, o roteiro incluía passagens por uma loja de chocolates e um restaurante em Esteio e uma doceria em Novo Hamburgo. A blogueirinha sai de casa com uma mala de roupas para se trocar a cada local visitado.
É uma maratona: as mudanças são feitas dentro do carro, sempre com peças escolhidas a dedo para estar no estilo da loja parceira.
- Muita gente acha que não moramos aqui, porque postamos fotos em vários lugares com roupas diferentes. Mas é que fazemos várias opções e postamos depois. É uma baita mala (risos) - explica Alice.
Gravando ou nos bastidores, a guria é simpática, mesmo quando está desgastada. Na doceria, come um brigadeiro, faz poses e tira fotos. É servido um chocolate quente com marshmallow, e Alice troca olhares com a mãe, que fala baixinho:
- Ela não gosta muito de marshmallow, mas não fala nada para as pessoas, é muito tranquila.
Alice parece lidar bem inclusive com os haters. Há três anos, em um vídeo publicado no canal Janela da Rua, disse não achar a homossexualidade "certo" e foi chamada de homofóbica por parte do público.
- Ainda há haters comentando isso. Talvez hoje eu teria a noção de não deixar ser publicado. Chorei lendo os comentários quando ela foi mal interpretada. Não queria expor minha filha, e ela não é assim, não temos problema com isso - diz Chaiane.
- Eu só tinha seis anos! Não tinha entendido bem - relembra Alice, afirmando que já superou tudo o que aconteceu na ocasião:
- Meu filho, tu só tá me dando views. Pode ser hater, tanto faz. Hoje, nem leio os comentários. Quando minha mãe lê e, se tem isso, ela não me fala.