Por Alexandre Rodrigues
Jornalista e escritor, autor de "Veja se Você Responde essa Pergunta" e "Maldito Frio"
Oito anos atrás, resolvi ler um livro de Philip Roth por ano, exceto Complexo de Portnoy, que já tinha lido, e foi assim até 2017. Começou com O Animal Agonizante, vindo depois Lição de Anatomia, Adeus, Columbus, Pastoral Americana, Casei com um Comunista, A Marca Humana, O Complô contra a América e A Humilhação. Gosto da obras dele sem amar. Tenho amigos que amam, percebo as qualidades, mas Roth me chegou numa época em que prestava mais atenção em como os livros são feitos.
Nesse aspecto, via e vejo excessos, mesmo em Pastoral Americana e A Marca Humana. Mas, a despeito de qualquer falha, o que pontua ambos como tantos romances dele são a genialidade e a habilidade narrativa. E ainda há Patrimônio.
Esse ficou de fora da lista porque tem uma história à parte. Foi lido antes, quase 10 anos atrás, em uma viagem de navio pelo sul do continente. Era o livro que, febril (cinco dias a 0°C após sair do verão no Brasil), lia quando cruzava o Cabo Horn. Foi uma experiência estranha a leitura sobre a decadência física de um idoso cercado de 2 mil idosos americanos e simpáticos.
Nesse livro, há a melhor cena que conheço de Roth. Envolve o pai dele, fezes, humilhação e a reflexão, fortíssima, de um filho vendo seu pai morrer. Você tem a chance de conhecer ao menos um pouco desse pai, pois, como o pai de Alexander Portnoy, ele também comia ameixas sem parar devido a problemas intestinais. Mas no final aquela criatura cuja autodisciplina, cultura e controle conseguiram por décadas adiar os efeitos do tempo se foi: um pai incapaz de se limpar era o patrimônio que havia ficado para o filho.
Soube que meu pai estava com Alzheimer, em 2010 – por coincidência, no mesmo ano em que resolvi ler um Roth por ano. Não fomos muito próximos, mas, nos três anos seguintes, nas vezes em que estive com ele e quando morreu, era a cena que me acompanhava. Fomos distantes, não eram os mesmos momentos, mas muito parecidas eram as conclusões, a minha e a do narrador. Toda visita lembrava da cena e da frase, que sigo usando na política e o mundo em geral. Uma marca de nosso tempo é que deixamos um monte de porcaria para a geração seguinte. "Ali estava meu patrimônio: não era dinheiro, não eram os selos, não era a caneca de barba, era a merda".
Voltei a Patrimônio dois anos atrás. Um seminário acadêmico sobre a morte do pai envolveu a leitura, de Karl Ove Knausgaard a Paul Auster, José Luís Peixoto e Donald Barthelme. Foi uma leitura curiosa, de meses, para examinar e reexaminar o mesmo tema do ponto de vista de mais de uma dezena de autores. Patrimônio estava na lista. A releitura me fez admirá-lo ainda mais. É uma bela obra sobre integridade e compaixão.
Mas também há o momento em que, quando era repórter em ZH, conheci Paulo Roberto Falcão, integrante do meu time de botão na escola, e, meio trêmulo, banquei o bobo. Foi o que me fez entender Zuckerman adulto babando pelo antigo ídolo sueco no começo de Pastoral Americana. E, sei lá a razão, também passei numa época pela experiência de sofrer do nada dores musculares intensas. Como em Lição de Anatomia.
Essa capacidade de plantar nos leitores a noção de que se trata de si mesmo e não um simples personagem já é algo, mas não esgota o talento de um autor como Roth. Há uma observação horrenda de A Marca Humana que passei a repetir para mim mesmo em pensamento, o leve conhecimento sobre a fabricação de luvas para senhoras que adquiri com Pastoral Americana e, lógico, o pai comendo ameixas.
Coisas que aprendi sobre Roth nos últimos anos são que ele tinha uma empregada, que ele se envolveu numa discussão com a Wikipedia sobre o próprio livro e que ele não gostava de sair de casa. Seus dois melhores amigos foram Kurt Vonnegut, autor de Matadouro 5, e Joseph Heller, de Ardil 22, escritores de Nova York, como ele, mortos nos últimos 20 anos. Há muitas pontes entre a obra de Vonnegut e Joe Heller, ambos criadores de clássicos antimilitaristas, mas Roth?
É no humor que os três se unem. Mas se Heller foi satírico e Vonnegut quase sempre escolheu a paródia, Roth explorou em modo adulto, muitas vezes fazendo graça, a mesma premissa de ambos: todo mundo é uma tremenda confusão ambulante e isso não melhora com o tempo.