Esbaforidas, as irmãs Francine e Fernanda Ramos ingressam no salão do CTG Aldeia dos Anjos, em Gravataí, em um início de noite de domingo. As manas passaram a tarde concentradas fazendo as provas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), mas a maratona daquele fim de semana desgastante ainda não tinha acabado: era preciso treinar com afinco para outra competição de peso, o Encontro de Artes e Tradição Gaúcha (Enart).
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Um dos maiores festivais de arte amadora da América Latina, o Enart é data certa no calendário dos tradicionalistas. Em Santa Cruz do Sul, mais de 60 mil pessoas costumam se reunir para assistir a apresentações de dança, música e literatura. Em sua 31ª edição, o festival tem início nesta sexta-feirae termina no domingo, no Parque da Oktoberfest.
A mais disputada modalidade é a de Danças Tradicionais, que consagra o grande campeão do encontro. O atual é o Aldeia dos Anjos, também o maior vencedor da história, com 11 títulos desde 1986, quando o Enart passou para a tutela oficial do Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG).
Ensaios que ocupam a agenda de sábado e domingo ou que se estendem até a madrugada são praxe para os grupos de dança gaúchos quando o Enart se aproxima. ZH acompanhou a preparação do CTG de Gravataí. A devoção dos 47 integrantes da invernada adulta se traduz em pontualidade, movimentos graciosos, sorriso no rosto em qualquer circunstância, harmonia impecável e muita cumplicidade dentro e fora do palco.
– Quando tu conversas com as pessoas que não conhecem muito a rotina de um CTG, elas falam: "Ah, tu faz CTG". Não, eu não faço. Eu danço – diz a estudante Francine, 22 anos. – A gente vive aqui dentro, é um estilo de vida. É preciso se entregar.
O amor das irmãs Ramos pela tradição nasceu há mais de 60 anos no coração de dona Hortência, a bisavó das jovens, que participou da fundação do CTG e ainda é lembrada como gaiteira de mão cheia.
– Fico emocionada quando contam histórias que envolvem a minha bisavó aqui no CTG. É muito bom estar revivendo a história da minha família – afirma Francine.
Naturalmente, a avó Valquíria começou a atuar no centro de tradições, ganhando destaque como violonista. A mãe de Francine e Fernanda, Fabiane, passou pelo mesmo ritual, mas enveredou pelo caminho da dança. A trajetória da família no CTG seguiu firme, e a paixão chegou à geração atual. Ainda crianças, as duas garotas se envolveram nas danças tradicionais.
– Com quatro anos, já admirava os grupos adultos. Hoje, danço com pessoas que eu idolatrava – conta Fernanda, 18 anos.
Desde 2015, as jovens bailam juntas na invernada adulta. A dedicação é total. Depois das provas do Enem, a dupla saiu apressada rumo ao CTG. Sanduíche em uma mão para mordidas rápidas, saia azul rodada na outra, uma corrida até o banheiro para os retoques finais antes de começar a dançar – a maquiagem é imprescindível para a prenda. Francine reservou boa parte de uma das tardes de domingo para testar o penteado que deve ser usado no festival.
– Essa matéria vai sair antes do Enart começar? Não quero mostrar o cabelo – questiona, desconfiada.
A competição é tão acirrada que tudo tem um tom de segredo. Detalhes das coreografias, assim como o tema escolhido, não saem de dentro do galpão. A disciplina dita o ritmo dos ensaios. Os instrutores Marco e Cármen Avila não deixam o grupo dispersar.
– Para tudo! Tem uma barriga nesta fila. Está torta. Vamos começar de novo, gaiteiro – ordena Marco, enquanto sorve o chimarrão.
Francine e Fernanda estão entre as mais concentradas. Somente nos intervalos – que são raros – se juntam às outras dançarinas para descontrair em bate-papos e beliscar algum lanche.
Os finais de semana em que ZH acompanhou o Aldeia dos Anjos bateram com datas de Gre-Nal, eleições municipais e Enem. Enquanto Inter e Grêmio ficavam no 0 a 0 na Arena, os aldeianos se concentravam em passos de anu, balaio e cana verde. Às vezes, alguém sussurrava querendo saber o resultado do jogo, sem muito alarde.
– Ensaiamos todos os finais de semana, o ano todo. Para estar aqui, tem de querer muito. Não conseguimos fazer coisas normais, como ir à praia – relata Francine. – Quem está aqui ama isso: dançar, representar, cultivar a tradição. A gente abre mão de tudo. Aqui é a nossa família, passamos mais tempo aqui do que em casa.
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O sentimento familiar emana. Namorados se conheceram ali, alguns já se casaram, outros têm filhos brincando em meio à dança do pau de fitas. Muitos são padrinhos uns dos outros, e a mãe de cada integrante passa a ser a matriarca de uma extensa prole. Francine diz:
– É até engraçado. Fazemos tudo juntos. Não dá tempo de sair e conhecer novas pessoas.
Mais tímida, Fernanda pede a palavra:
– De repente, seguimos por mais umas quatro gerações aqui.
"SÃO COMO MEUS FILHOS", AFIRMA JANE
"É MINHA SEGUNDA FAMÍLIA", DIZ PAULO
Sempre que é sorteada a dança do pau de fitas para o Aldeia apresentar no Enart, Jane Luz Santos, 60 anos, começa a suar frio. A professora aposentada é a responsável por costurar delicadamente os tecidos no enorme mastro de madeira que serve de suporte para o desenho das fitas entrelaçadas.
– É uma responsabilidade, as fitas precisam estar firmes. Até hoje, nunca deu nada errado. Mas já vi muita coisa acontecer no Enart – conta Jane, coordenadora do grupo de danças adulto há 10 anos.
Se o Aldeia tem ensaio marcado, lá está Jane nos bastidores preocupada com os detalhes para as apresentações oficiais: das pilchas exemplares ao cenário perfeito, do remédio para dor de barriga aos sprays que relaxam a musculatura dolorida. Nem para dar entrevista a coordenadora tem descanso. De cinco em cinco minutos, se ouve um "tia Jane" vindo de algum lugar do salão.
– Trato eles como se fossem meus filhos. Deixo tudo em casa para estar aqui – conta.
Com a proximidade do evento em Santa Cruz, o trabalho de Jane quadruplica. Não há dia de folga. Para o Enart, leva até máquina de costura na mala:
– É uma adrenalina. Preciso estar pronta para tudo.
Desde 2001, ela frequenta o CTG com sua família. Como a filha Letícia é uma das mais antigas integrantes da invernada adulta, o envolvimento de Jane ocorreu de forma natural. Hoje, ela comanda até um animado grupo de pais e mães que tietam os filhos nos ensaios e nas competições. Enquanto os dançarinos repetem exaustivamente o xote carreirinho e a chimarrita balão, um time de familiares se acomoda em um dos cantos do galpão, lidando com tecidos e agulhas.
– Estamos costurando esses detalhes para os vestidos das gurias no Enart. Todo mundo precisa ajudar – diz Jane às 20h do longo último domingo antes do Enart.
Ela é meticulosa com a indumentária do grupo. No CTG, há uma sala reservada para apetrechos de apresentações passadas – como dezenas de vestidos e bombachas. Afinal, tudo pode ser reaproveitado de um ano para outro, barateando custos para os integrantes da invernada – o orçamento total fica geralmente entre R$ 30 mil e R$ 50 mil (em média, custaria cerca de R$ 1 mil por pessoa). Não há patrocínio, ou seja, o grupo precisa arrecadar fundos fazendo eventos, almoços, jantas e torneios de futebol.
A mística em torno do CTG de Gravataí envolve uma mesa com anjos, santos e velas (montada ao fundo do salão durante os ensaios) e uma alma. Que tem corpo, canta e toca pandeiro. Paulo Gnoatto, 55 anos, é conhecido como "a alma do Aldeia".
– Já fui coreógrafo, instrutor de dança e, hoje, estou na parte musical. Enquanto me achar útil para o grupo, vou ficando – diz o analista de sistemas que há 40 anos fincou o pé no CTG para não sair mais.
Na década de 1950, o pai do músico foi um dos fundadores do centro de tradições. Acordeonista do grupo por quase quatro décadas, Bruno Gnoatto sonhava com uma invernada que pudesse levar a dança gaúcha para o mundo. Na barra da bombacha do pai, crescia Paulo, que chegou a dançar no grupo adulto embalado pelo acordeão do patriarca.
– Já tive mais de 30 pessoas da minha família aqui. Hoje, posso dizer que não tenho 30 pessoas com o meu sobrenome, mas tenho muita gente que divide uma história comigo – ressalta Paulo. – É a minha segunda família. Sei que é clichê, mas é verdade.
Paulo integra o conjunto musical do grupo adulto. Peões e prendas dançam sempre com execução ao vivo, e a banda precisa ser tão compenetrada quanto os bailarinos. Para as canções das coreografias de entrada e saída, há um tema que inspira a composição feita pelos músicos. A preocupação é encontrar o encaixe perfeito: letra, melodia e dança devem preencher o palco de forma harmônica, contagiando o público e, claro, conquistando os jurados.
– Os passos estão em cima das notas, dos compassos, dos tempos. Um erro, às vezes, de um tempinho a mais, uma notinha, não pode, porque eles vão se perder – avalia Paulo.
Ao final dos ensaios, um círculo é formado no meio do salão, para entoar um canto dos aldeianos e fazer as orações finais. Paulo seguidamente tem uma palavra de incentivo para o grupo que ele viu se desenvolver e se tornar uma potência nas danças tradicionais. Uma trajetória que não traz nenhuma segurança, segundo ele:
– Estamos na expectativa de mostrar um trabalho novo. Inovar é um grande desafio. Sempre dá um frio na barriga no Enart. Quando acabar esse friozinho, realmente terminou para mim.