
Ao conhecer a Fundação Iberê Camargo (FIC), Nuno Ramos teve um lampejo de ideias. Em uma delas, viu o prédio à beira do Guaíba como uma embarcação. E ficou com isso na cabeça.
Conhecido por obras de grande porte, como os dois aviões espatifados em cima de árvores que levou para o Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio em 2010, e propostas mais estridentes, como o viveiro de urubus que instalou na Bienal de São Paulo daquele mesmo ano, Nuno içou, até o quarto andar da FIC, a lateral do casco de um barco centenário que comprou de pescadores em Itapuã. Mas, mesmo com a engenhosa operação para a montagem de Ensaio sobre a Dádiva, exposição que será inaugurada nesta quinta-feira (29/5), ele diz ter feito, desta vez, um trabalho menos monumental:
- Por incrível que pareça, é uma das exposições mais leves que já fiz.
Um dos mais importantes artistas brasileiros em atividade, reconhecido pela diversidade da carreira, trilhada desde sua atuação no movimento jovem de retomada da pintura nos anos 1980 à posterior produção multimídia das décadas seguintes, Nuno hoje faz trabalhos grandiosos, concebidos para determinados lugares. Daí a exclusividade do projeto que ele começou a desenvolver em setembro especialmente para apresentar na FIC:
- É um trabalho pensado para o espaço - conta o paulista, que nasceu em 1960 e cursou Filosofia na USP. - Quando vi o vão interno do prédio, quis usar aquele vazio, deixando ali algo pendurado, flutuando.
No átrio do térreo, quem olhar para o alto verá duas estruturas projetadas no vão central, tendo em suas extremidades objetos que parecem prestes a despencar. Um deles é um violoncelo preso à ponta do casco de um barco - no lado oposto, para dentro da galeria, há um copo com água do Guaíba. O segundo é um cavalo de carrossel preso à ponta de um trilho de montanha russa projetado para o vão - na outra extremidade, dentro da galeria, um aparelho de som reproduz temas de Zé Keti, Noel Rosa e Lamartine Babo com citações à figura do pierrô.
O palhaço triste, aliás, é personagem de um dos dois filmes que Nuno fez em Porto Alegre como parte da instalação. Um dos curtas conta a história de um pierrô que é trocado por um cavalo. No outro, acompanhamos uma garota que troca um copo de água por um violoncelo. O conjunto de vídeos e objetos das duas salas tem relação com a terceira, onde Nuno apresenta réplicas das duas estruturas suspensas. Nessas esculturas, ele fez passar pelo interior mangueiras que se conectam a dois grandes tubos de ensaio. Um motor faz circular nesse sistema uma mistura de água do Guaíba, glicose e morfina. A sala ainda apresenta gravuras feitas no Ateliê da FIC.
Na terça-feira à tarde, Nuno comandava a preparação da complexa instalação, dando instruções à equipe e pegando junto no pesado para montar e posicionar as peças.
- Me dá uns minutinhos, por favor? Preciso acompanhar isso para que dê tudo certo - disse ao repórter, pedindo um tempo antes da entrevista.
A partir de uma pesquisa conceitual com o curador Alberto Tassinari, envolvendo o estudo antropológico Ensaio sobre o Dom (1925), de Marcel Mauss, Nuno pensou plasticamente a noção de dádiva.
- Talvez seja uma das minhas exposições com acento conceitual mais forte - admite o artista. - Parto da dádiva como ideia de troca. Antropologicamente, dádiva remete a sociedades que têm trocas, mas que não vivem exatamente do lucro. Pensei então em trocas malucas, de coisas que até podem ser trocáveis, mas não têm exatamente equivalência. Ou seja, como se fosse possível propor formas de troca e equivalência que não fazem parte dos nossos sistemas de ganho e lucro.
Ensaio sobre a Dádiva é apenas um dos diversos projetos que Nuno realizará até o fim do ano. Em junho, levará um caminhão de 27 toneladas carregado de tijolos para o Museu da Imigração, em São Paulo. O trabalho é inspirado em É Isto um Homem?, livro em que Primo Levi, em determinada passagem, amaldiçoa o trabalho e o tijolo. Em novembro, Nuno reapresenta na Pinacoteca de SP O Globo da Morte de Tudo, instalação de 2012 composta por prateleiras repletas de objetos frágeis e conectada a um globo da morte em tamanho real - a performance dos motociclistas dá início a uma ruidosa e intencional destruição.
Nuno Ramos - Ensaio sobre a Dádiva
> Abertura quinta-feira (29/5), às 19h, para convidados. Visitação a partir de sexta-feira (30/5), de terças a domingos, das 12h às 19h, exceto às quintas-feiras, quando o museu fica aberto das 12h às 21h. Até 10 de agosto. Entrada grátis.
> Fundação Iberê Camargo (Av. Padre Cacique, 2.000), em Porto Alegre, fone (51) 3247-8000.
> Onde estacionar: estacionamento pago, no subsolo, com entrada pela Av. Padre Cacique, no sentido Zona Sul.
> A exposição: com curadoria de Alberto Tassinari, apresenta instalação de Nuno Ramos. No vão central, duas estruturas projetam um violino e um cavalo de carrossel. Ainda há filmes, esculturas e gravuras.