Um debate sobre a redescoberta da obra de Moacyr Scliar na Alemanha, na tarde desta segunda-feira na Feira do Livro, transformou-se em uma sessão elegíaca ao autor.
Se os alemães estão sendo lembrados da literatura de Scliar, que já havia sido traduzido no país nos anos 1990, o público presente foi lembrado da enorme importância do autor para o cenário cultural do Rio Grande do Sul.
O painel sobre a redescoberta de Scliar, parte da programação da Feira envolvendo o país homenageado, a Alemanha, teve a participação da viúva do escritor, Judith Scliar, dos escritores Cíntia Moscovich e Rafael Ban Jacobsen e da editora alemã Marlen Eckl, tradutora de novas edições de Moacyr Scliar na Alemanha. A sessão começou com a exibição de um depoimento gravado do próprio Scliar, falando sobre como sua literatura devia à atmosfera da casa de seus pais, no Bom Fim.
"Meu pai não era um leitor muito frequente, mas era um grande contador de histórias, e foi ele que me despertou a vontade de contar minhas próprias histórias", contava Scliar na gravação.
A imagem de Scliar na tela talvez tenha pautado o tom geral do encontro, menos uma exposição técnica sobre as novas traduções na Alemanha e mais um sessão de saudosas recordações.
- Tem um ditado do povo judeu que diz que não estão mortos os que são lembrados, e nós temos que lembrar do grande ser humano que era o Scliar. - disse Cíntia Moscovich, a primeira a falar.
Para ela, Scliar foi o responsável por estabelecer o judaísmo como um tema na literatura nacional.
- Aprendemos com ele a ser judeus, gaúchos e brasileiros. Ele abriu a porta para que se pudesse usar a temática judaica na nossa literatura. Outros que fazem isso hoje, como eu, Michel Laub, Tatiana Salém Levy, o fazem porque o Scliar abriu essa possibilidade a todos nós - disse Cintia.
Uma análise que Rafael Bán Jacobsen, mais tarde, confirmaria, ao também declarar-se inspirado pela literatura de Scliar. Para ele, uma das explicações para o renovado interesse alemão pela literatura do autor porto-alegrense passa pelo interesse germânico na literatura que detalha a formação do caráter de um indivíduo e o resultado de suas escolhas.
- A Alemanha é o berço por excelência do Bildungsroman, o romance de formação. É um país que dá importância a essa possibilidade de acompanhar um personagem e ver como ele se constitui internamente. E alguns dos livros mais lidos e relidos, mais debatidos, na obra de Scliar, têm essa característica, como O Centauro no Jardim, Max e os Felinos, A Guerra no Bom Fim, Eu Vos Abraço Milhões.
A viúva do autor, Judith, acrescentou uma dimensão pessoal lembrando histórias de Scliar, como sua facilidade e rapidez para escrever, o que ajuda a explicar sua prolífica obra com mais de 80 livros, além de um sem número de contribuições para a imprensa.
- Certa vez pediram para ele uma resenha com muita urgência. Ele leu muito rápido o livro e escreveu em meia hora, mas esperou até mais perto do fim do prazo para não parecer que ele tinha feito o trabalho de modo frívolo. Ele de fato mergulhava no texto e aquilo vinha muito rápido.
A tradutora Marlen Eckl, responsável pela edição recente na Alemanha de duas novas traduções do autor, A Guerra no Bom Fim e Os Deuses de Raquel, não conteve a voz embargada ao lembrar do processo que levou à publicação. Eckl conheceu o casal Scliar durante a elaboração de uma tese de mestrado sobre a temática judaica e a literatura no exílio, e se tornou amiga de ambos.
Quando soube, em 2010, que o Brasil seria o país homenageado na Feira de Frankfurt, propôs a tradução de A Guerra no Bom Fim. O livro foi bem recebido na Alemanha, despertando curiosidade por uma obra que falava dos efeitos da guerra na América Latina. Quando a editora se interessou por uma segunda obra, Scliar já estava internado, e a decisão de qual obra traduzir coube a Marlen.
- Ele me disse certa vez que os livros mais autobiográficos de sua carreira eram O Centauro no Jardim, A Guerra no Bom Fim e Os Deuses de Raquel, livros do início da carreira, quando o autor está começando. Como O Centauro.. já tinha edição na Alemanha, escolhi os Deuses... para completar essa "trilogia" - contou.