Nas lonjuras dos 1970, quando chegou a hora do compositor Pierre Boulez construir o seu instituto de pesquisas, o Ircam, a solução arquitetônica encontrada foi bem engenhosa. O Ircam era, na época, a fronteira extrema da junção entre tecnologia e música, o cumprimento das promessas que tinham sido feitas desde os 1950 de fazer com que as duas, música e tecnologia, se entendessem e seguissem, juntas, para terrenos inimagináveis. Fosse hoje e o Ircam teria sido uma declaração arquitetônica, um prédio desses vistosos que hoje empacotam a música. Como era naquele tempo de iconoclastia e como a cidade era Paris, submergiu-se o Ircam sob a Praça Igor Stravinsky (o nome não é coincidência).
Laboratórios, auditórios, escritórios - tudo foi enterrado sob a praça e os únicos sinais visíveis de que por ali se pesquisava a fronteira da música eram os imensos respiradouros, que bem transformavam a praça num convés de transatlântico, e uma escada que levava para as profundezas. Em resumo: o Ircam era uma arquitetura ao contrário. Ainda hoje, se quisermos ter uma ideia do todo daquele prédio invisível, teremos que recorrer às plantas-baixas, às elevações laterais, aos cortes, aos croquis que fariam a alegria de uma prancheta de arquiteto.
Passaram os 1970 e o Ircam se expandiu e não houve jeito: cresceu para o ar de fora, transferindo boa parte dos escritórios para uma torre projetada por Renzo Piano e que lá está, nas adjacências da Praça Igor Stravinsky. A bem da verdade, a torre é um caixote. Projetado por Renzo Piano. Mas caixote. Justamente: tantas vozes se levantaram contra a demolição das casas da Luciana de Abreu e não houve voz que se levantasse contra a destruição do Teatro da Ospa (ou Teatro Leopoldina, como quereriam os antigos). É que o Teatro da Ospa é um caixote que está lá ainda, à espera da morte, sem nenhum sinal externo da boniteza que emociona os passantes, que desperta protestos, que movimenta comunidades.
As casas pouco significam para mim, embora eu reconheça o valor - talvez mais afetivo do que arquitetônico - que elas têm para uma comunidade. Aquela região da cidade sempre foi terra incógnita para mim e, em criança, aquilo me parecia um emaranhado incompreensível de ruas, mais complicado na vida real do que na simplicidade do mapa. Não tive chance de desenvolver nenhum afeto por aquelas ruas e pelas casas que habitam aquelas ruas. Uma deficiência toda minha, compensada pelo afeto que sinto por tantas outras ruas e por tantas outras casas dessa cidade - e até de algumas cidades que não essa. Afeto como o que sempre senti, desde o momento zero, pelo caixote do Teatro Leopoldina.
Cavoucar a memória. Ravi Shankar diante da plateia mais silenciosa, nas suas palavras, que ele já tinha visto (e ouvido, ou não). Astor Piazzolla nos tempos de celebridade ainda apenas portenha, o reinventor do tango que vinha para cá com a insuportável Amelita Baltar que então achávamos ótima. A montagem clássica de Os Pequenos Burgueses do Teatro Oficina e o Arena conta Zumbi, também clássico, do Teatro de Arena. O Roda Viva não houve tempo de ver, mas lembro dos pilares do teatro pichados pelo comando de caça aos comunistas, como se chamavam os burguesinhos da época. Maria Bethânia em Opinião. Elis voltando pela primeira vez ao sul para estrear um espetáculo, Transversal do Tempo, com direito a entrevista e a me chamar de querido.
Meu afeto pelo teatro/caixote foi construído com essas coisas. O ruído de madeira da mudança instantânea de cenários em My Fair Lady e anos mais tarde as montagens de ópera da Ospa e sua iluminação precária fazendo as vezes de alvorada em O Escravo de Carlos Gomes. Vitor Ramil num espetáculo inesquecível dos tempos do Barão de Satolep, num repertório que nunca chegou a ser registrado. Eu no palco com os Almôndegas ou dirigindo os próprios de parceria com Luiz Arthur Nunes. E uma montagem local ousadíssima de Toda Nudez Será Castigada, quando a dramaturgia de Nelson Rodrigues ainda chocava.
Mas então tudo se afunda no Ircam subterrâneo da memória, nos escombros que se aproximam. Não chego a dizer, como disse Quintana num de seus arroubos característicos: "Não gosto de casas novas porque as casas novas não têm fantasmas". Pois compreendo melhor a arquitetura feita dos afetos guardados na lembrança do que a arquitetura feita da concretude das paredes decrépitas. Ah, a demolição das casas. Ah, a obliteração de um teatro. Fiquemos com a inevitabilidade de Quintana: "A casa era maior que o mundo! E até hoje - mesmo depois que destruíram a casa grande - até hoje eu vivo explorando os seus esconderijos..."