Descrente da proverbial oposição entre ação e pensamento, o governador Tarso Genro mantém interesse vivo no debate teórico. Tanto que convidou algumas figuras para conversar, em público, sobre o tema urgente das manifestações - como entender a voz das ruas? Foi na segunda passada, no austero salão Negrinho do Pastoreio, do Palácio.
Convidado também eu, ao lado de parceiros bem mais habilitados para o tema, como o próprio Tarso, Marco Aurélio Weissheimer e Marcos Rolim, aceitei, mais por vaidade do que por capacidade. Tentei esboçar um comentário, que saiu meio truncado, por limitações pessoais de oratória. Tento aqui expor de modo um pouco mais organizado o mesmo pensamento. E juro que não vou dizer que não dá pra entender nada, que o barulho é variado demais, que tem gente falando coisas as mais disparatadas - tudo isso é verdade e já foi dito. Mas também não prometo esclarecer muito, porque, bem, é que não dá pra entender nada, o barulho é variado demais, etc.
Fim de ciclo
É bem provável que estejamos vivendo o fim de um ciclo. Alguns marcam o ano de 1988 como início dele, na Constituinte, numa visão que centraliza a política institucional. Outros poderão marcar a eleição de Fernando Henrique Cardoso, no já distante 1994, inaugurando governos liderados por paulistas. O recorte estadual não é de todo trivial, porque, faça as contas comigo, desde a República Velha não havia um governo significativo de paulista - o gaúcho Getúlio ficou de 30 a 45, depois veio Dutra, mato-grossense, Getúlio de novo, em seguida o mineiro Juscelino, sucedido pelo sim paulista Jânio Quadros, maluco que ficou meio ano no poder e renunciou, quando então entrou Jango, gaúcho, derrubado pelos militares, pela ordem o cearense Castelo Branco, uma enfiada de três gaúchos (Costa e Silva, Médici e Geisel) e o carioca Figueiredo, que se recusou a passar o poder para o maranhense Sarney, que tinha herdado a vaga do mineiro Tancredo, e enfim o primeiro eleito diretamente em décadas, o improvável alagoano Collor, derrubado em favor do mineiro Itamar. Aí FHC e Lula.
São Paulo não é apenas a maior concentração de renda e atividade econômica do país, mas também o berço dos dois partidos mais consistentes desde a redemocratização, o PSDB de FHC (que por sinal nunca emplacou aqui, além de carregar divisões internas medonhas) e o PT de Lula. Pois dois mandatos de Fernando Henrique e dois de Lula nos mostraram a força de São Paulo, até mesmo na eleição de Dilma, abençoada por Lula.
Claro que há distinções enormes entre FHC e Lula no poder, o que se poderá medir pela ativação da economia interna, a partir dos contratos e dos financiamentos bancados pelo Estado, promovida tenaz e eficazmente por Lula e Dilma, sem falar na distribuição muito mais significativa de renda também dos petistas. Aliás, essas duas práticas, combinadas, estão no centro do modelo de desenvolvimentismo (Tarso tem chamado de "lulodesenvolvimentismo") que talvez tenha agora encontrado seu limite estrutural. Limite dado pela ordem internacional, na qual o Brasil tem papel reduzido e pouca margem de manobra, quase toda ela, ao que parece, já utilizada até aqui.
Levando a cabo esse modelo, o governo federal está proporcionando uma rara situação de pleno emprego e aquecimento forte da vida econômica, com uma digna distribuição de renda, o que é ótimo. Mas para cumprir esse modelo, forçou algumas barras, de que é possível ver dois exemplos ligados às manifestações recentes: um, a desmesurada força dada à economia do transporte individual, contra soluções para o coletivo, o que dá emprego mas entope nossas ruas e acaba com a paciência e o bom ar; outro, a insuficiente atenção dada aos índios, sejam eles os desesperados guarani-kaiowá, que despertaram uma bela onda de solidariedade virtual, sejam os ainda saudáveis guardiões da região de Belo Monte, lá no Xingu.
Motes
Não há como expandir muito esse modelo de desenvolvimento, mesmo que seja socialmente inclusivo como tem sido, na direção de uma sociedade de tipo estadunidense. Não tem como: os EUA têm algo como 8% da população mundial e consomem, pelo que ouvi, em torno de 25% da energia produzida no planeta. Nem o Brasil, nem ninguém poderá, em qualquer hipótese, repetir. (O ministro Joaquim Barbosa dá a pinta de gostar muito daquilo, tanto que, parece que atropelando a lei que veda certas iniciativas empresariais a juízes, criou uma empresa para comprar mais barato um apê em Miami. Além de tudo, um mau gosto notável.)
A ecologia não é causa distante para quem foi às ruas: ela está incorporada ao comentário cotidiano, nas cidades. A valente luta pelas bicicletas nas ruas faz parte disso, assim como o repúdio às soluções urbanísticas que centralizam ou exclusivizam o veículo particular. Mas o que parece realmente ter acendido a mecha subjetiva foi a Copa. Brasil, o país do futebol, o maior vencedor nos torneios de seleções, só tinha sediado uma Copa, lá em 50, quando talvez 80% dos habitantes agora vivos não tinha nascido - e a perdemos. Agora vamos fazer a Copa, e para ela as capitais estão em obras de grande impacto: a Copa de 14 não é uma coisa remota, mas uma presença diária, já há mais de ano.
Pois para fazer a Copa rola uma grana incrível, como não apareceu para hospitais e escolas, bancada pelo governo federal em grande parte, assim como por renúncia fiscal dos estados e municípios. E essa grana, tirante as malversações, que não parecem pouca coisa, faz estádios padrão FIFA, na terra em que não temos saúde, educação e segurança, para ficar apenas no essencial. O senhor e eu, que pagamos saúde, educação e segurança privadas, nem assim as temos em qualidade superior, correto? Imagine os de baixo, os que as têm apenas públicas.
E nem falamos dos elementos primeiros da insatisfação: a corrupção e a negligência, à direita e à esquerda. O que é que pode fazer o cidadão médio, diante disso? Votar em outro partido? Esperar pela próxima eleição? Acreditar no Tribunal de Contas da União, cujo próximo presidente praticou aquela malandragem de datas que deveria ser suficiente para a vergonha mais elementar?
Tempo e espaço
Defendo a singela tese de que as manifestações são, foram, um curto-circuito, que prendeu fogo. Curto-circuito: para que toda a energia implicada no quadro acima descrito se dissipasse, seria necessário haver horizontes largos, perspectiva de longo prazo, cultivo de valores permanentes. Mas vivemos o império do curto prazo e do horizonte estreito: tudo virou um presente eterno.
De seu lado, a classe média foi massivamente para as ruas, toda ela conectada (na hora do bololô, lá estavam todos ligando, tuitando, postando, lendo, se informando, armando), com sua sensibilidade definida pelo padrão internet, que comprimiu o tempo e o espaço ao agora e ao aqui. Todo o passado parece ser acessível a um toque, toda a lonjura aparece na tela; tudo que a história e a geografia acumulam e espalham lentamente parece, na internet, simultâneo e vizinho. Parece.
Do outro lado, o lado dos alvos dos protestos, digamos genericamente os poderes constituídos (executivos, legislativos, judiciários), mas igualmente as instituições encarregadas das longas durações (escola, universidade, sindicatos, partidos, a cultura letrada, igrejas), este lado também parece refém do curto prazo e do horizonte estreito, tudo para já, inclusive na negociação com o Além. Não é apenas a atrapalhação nas ações do governo federal, em vista das ruas; é tudo: o Congresso (deliberando hoje e renegando amanhã), o Supremo (deliberando por pressão da mídia), a Universidade (acossada pelo ENEM), tudo parece pautado pelo imediato.
No encontro dessas urgências, velozes como nunca, sem a mediação das importâncias, quase sempre lentas em sua permanência, rolaram as pororocas de junho. Não era a revolução com que alguns ainda sonham, nem era a chegada da Nova Era Digital sinônima de uma suposta liberdade eterna. Era o curto-circuito.
Não sei se a mesma classe média vai voltar massivamente para as ruas (falando nisso, as ruas retomadas pelo passo a pé são uma marca política viva: esta cidade é nossa, nós queremos andar nela livremente, sem medo e com prazer). Grupos ligados a movimentos políticos, de partidos ou não, é claro que voltarão a qualquer hora porque estão aí para isso mesmo (e ainda bem), talvez até convencendo alguns a entrarem na parada de novo. Mas é certo que as manifestações de junho foram uma tentativa, esperançosa, iludida até, de alterar o rumo da palhaçada em que se converteu uma vasta parte da política institucional e de clamar por horizontes amplos e defensáveis. Uma tentativa, talvez a última, antes de cinismo e da indiferença.