A inauguração oficial da parceria de Aldir Blanc e João Bosco deu-se no primeiro Disco de Bolso, compacto lançado pelo Pasquim em 1972 como O Tom de Antônio Carlos Jobim e o Tal de João Bosco. Ziraldo e Sérgio Cabral, editores do jornal que era um dos grandes sucessos da época, chamaram o compositor Sérgio Ricardo para produzir o disco, que, no lado A, teria a primeira gravação de Águas de Março e, no lado B, o desconhecido músico mineiro cantando Agnus Sei, dele com letra do médico carioca Aldir (eles se conheceram em Minas Gerais um ano antes, quando João ainda estudava Engenharia em Ouro Preto). Ao ouvi-lo cantando daquele jeito, e aquela letra, Jobim ficou impressionado e brincou com o produtor: "Ô Sérgio, você tá querendo me derrubar?".
Essa é uma das tantas histórias contadas no livro Aldir Blanc - Resposta ao Tempo, do jornalista carioca Luiz Fernando Vianna, que traça com grande sensibilidade, fartura de informações e texto irretocável o perfil de um dos mais importantes letristas da música brasileira, talvez o mais singular, inventivo e abrangente tematicamente, com vários clássicos repisados todos os dias no país inteiro. Completa o livro o que se pode considerar a íntegra das letras de Aldir, cerca de 450, com quase 50 parceiros, sendo os quatro principais João Bosco (mais de 100), Guinga (mais de 80), Moacyr Luz (mais de 60) e Cristóvão Bastos (mais de 30), vindo a seguir Maurício Tapajós e Carlos Lyra. Alguns em só uma música, como Ed Motta, Sivuca, Paulinho da Viola, outros com duas, três, ou pouco mais, como Ivan Lins, Edu Lobo, Raphael Rabelo, Djavan, Sueli Costa. Se o leitor preferir começar pela parte das letras, inúmeras inéditas, entrará no perfil já maravilhado e com o esquentamento feito - Vianna considera inadequado chamar seu texto de uma biografia: "Afinal, o poeta está vivo e continua produzindo".
Em 1972, Aldir iniciava sua vida profissional como psiquiatra e já era um compositor de certo destaque entre a nova geração de músicos do Rio. Em meados dos anos 60, integrara grupos amadores de bossa nova como baterista, depois participara de duas edições do Festival Internacional da Canção e de festivais universitários - num deles, em 1970, ficou em segundo lugar com o samba Amigo É pra Essas Coisas, parceria com o amigo Sílvio da Silva Júnior e interpretado pelo MPB-4, que logo o gravaria. Foi o primeiro sucesso, hoje com mais de cem gravações. Também já fora gravado por Elis, que escolhera a canção Ela, dele e César Costa Filho, para dar título ao seu disco de 1971.
Ainda em 1972, Elis entrava como um furacão na vida de João e Aldir, gravando Bala com Bala, segunda faixa do disco que tinha Nada Será Como Antes, Águas de Março, Atrás da Porta, Cais, Casa no Campo... No ano seguinte, gravaria quatro músicas deles: Agnus Sei e as inéditas O Caçador de Esmeralda, Cabaré e Comadre. Em 1974, mais três: O Mestre-Sala dos Mares; Dois Pra Lá, Dois Pra Cá e Caça à Raposa. Sucesso no rádio, entrevistas, shows pelo Brasil, eles estavam nas manchetes. Finalizavam meia dúzia de canções e corriam para mostrá-las à cantora. Em seu show de maior sucesso, Falso Brilhante, ela lançou outras três, entre elas O Cavaleiro e os Moinhos. Aldir e Maurício Tapajos dirigiram em 1978 o show Transversal do Tempo, que sucedeu a Falso Brilhante e estreou em Porto Alegre.
Um ano depois, Elis faria a 20ª e última gravação de música da dupla, a mais conhecida de todas, O Bêbado e a Equilibrista, encaixada como uma luva na campanha pela anistia e no retorno dos exilados. "A gente sempre esperava que ela pudesse escolher as nossas canções. E isso aumentava o grau de exigência", lembra Aldir no livro, escrito a partir de encontros na famosa biblioteca de 15 mil volumes do letrista. João Bosco, sobre a parceria: "Nossa grande sintonia sempre foi essa: falar quase nada e se entender de forma impressionante. Eu contava as minhas histórias e sabia que aquilo viria em algum lugar nas letras. Sendo uma pessoa observadora, nada escapava a ele".
Voltando a 1974, estavam os parceiros no meio da alegria quando uma tragédia desabou na vida de Aldir. Grávida de gêmeas, sua mulher perde as duas no parto prematuro de sete meses. Seriam suas primeiras filhas. Uma nasceu morta. "A que durou mais morreu sangrando por todos os orifícios: ouvidos, nariz, boca, e eu colado na incubadora em um jaleco de merda. Aí, é o seguinte: se eu não salvo as minhas filhas, não salvo ninguém. Tô fora, não é isso o que eu quero fazer." Decide abandonar a Medicina e a Psiquiatria para se dedicar só à música. Mas o duro golpe calara fundo. Mesmo que um ano depois nascesse saudável a primeira filha (a segunda viria em 1981), ele passou a beber com mais frequência, foi se afastando de alguns hábitos sociais e viu fobias "florescerem de forma amazônica". Cético "desde sempre", viu ainda instalar-se um quadro de depressão, de ensimesmamento, de pessimismo crônico. Procurou auxílio médico e terapêutico, mas isso não reverteu a situação. O humor, na música e nas crônicas, sempre seria sua válvula de escape.
"Não posso dizer que fui cursar jornalismo para entrevistar Aldir Blanc", escreve o autor, que cresceu ouvindo as músicas dele e, estudante, não perdia as saborosas crônicas publicadas no Pasquim e em outros jornais cariocas, quase invariavelmente ambientadas nos anos 1950. "Mas, ao estar no Segundo Caderno de O Globo, em 1991, tentei logo fazer isso. E quis abordar a causa da separação entre ele e João Bosco, para mim algo tão doloroso quanto a morte de um super-herói para um gibimaníaco. Quebrei a cara dos dois lados. João não quis papo. Aldir, nas vezes que conversamos por telefone, deixou ao menos entreaberto um caminho para que eu me aproximasse."
Recheado de fotos, o livro esclarece os motivos da separação, que duraria 20 anos e que começou por volta de 1982 e do disco Comissão de Frente. Durante uma década, eles se falavam praticamente todos os dias. Aí, passaram a se falar uma vez por semana, depois uma vez por mês, até ir cada um para o seu lado, compondo com outros parceiros, e não se falarem mais. Não houve uma causa mortis para o fim da parceria, e sim um conjunto de fatores que desgastou a relação, resume Vianna. "Assim como nos casamentos." Os episódios que envolvem a retomada da amizade e da parceria são momentos de especial emoção de Resposta ao Tempo e, entre outros detalhes, contam com a participação de Francisco Bosco, talentoso filósofo e letrista filho de João e... afilhado de Aldir - ficou 20 anos afastado do padrinho, que considerava um ídolo. O reencontro se deu no final de 2001, durante a gravação do songbook de João Bosco para a gravadora Lumiar, com os dois fazendo pela primeira vez um dueto, em O Bêbado e a Equilibrista. A parceria foi retomada, sem pressa, com um samba composto em 2005, Toma Lá Dá Cá, e quatro canções incluídas por João em seu disco de 2009. Em 2012, fizeram mais uma para o remake da telenovela Gabriela.
A parceria ocupa boa parte do perfil. Mas não para falar dela, e sim de como Aldir via as coisas. Também Moacyr Luz e Guinga recebem o destaque merecido, são amigos próximos dele. Aldir personalizava as parcerias: se com João havia muita coisa afro, histórica, heráldica, abolerada, com Moacyr fez sambas, canções sobre o Rio, e com Guinga compôs valsas, choros, "versos orgulhosamente repletos de delírios para melodias assimétricas", anota Vianna. Com seu próprio nome na capa, lançou dois CDs: 50 Anos, com parceiros variados, em 1996; e o impactante Vida Noturna, lançado em 2005, perto dos 60 anos. Mentor e produtor de Vida Noturna, Moacyr passou trabalho para arrancá-lo de casa e levá-lo ao estúdio para cantar. Mas ele também tinha os seus motivos para gravar: "Eu precisava fazer esse disco. Queria mostrar a minha voz, dizer: eu canto assim". No álbum, que tem participações de João (na faixa título), Moacyr, Guinga e é encerrado pela canção Resposta ao Tempo (parceria com Cristóvão Bastos), Aldir filosofa sobre a velhice. Desde então, ele vinha perdendo muitos amigos. E, no final de 2012, morre seu cão labrador, parceiro de anos - no livro, diz não ter sentido dor tão intensa desde a morte das filhas. "Tive duas mortes fundamentais muito cedo, as gêmeas. Isso me ancora a uma espécie de respeito pelo passado. Depois, começa a morrer tudo em volta. Meu caderno de telefones é um cemitério: uma cruz atrás da outra. Estou pressionado por essa evidência."
Aldir Blanc Mendes nasceu em 2 de setembro de 1946 no bairro do Estácio, no Rio. O pai passava o dia fora, a mãe, como ele diz, "já saiu do parto para uma espécie de neuropsicose puerperal da qual jamais se livrou até morrer". Aos três anos, ele passou a ser criado, de fato, pelos avós maternos, em Vila Isabel. A casa com quintal, os tios e os primos, os personagens populares do mitológico bairro, são parte da memória que ele colocaria nas letras e nas crônicas. Uma prima foi quem lhe ensinou a dançar bolero, dizendo "são dois pra lá, dois pra cá". Era um ótimo aluno, e o avô o estimulava a ler, dando dinheiro para comprar gibis e livros de bolso nas bancas de jornais. Ganhou todo o Monteiro Lobato e coleções como Paratodos e Terra, Mar e Ar. Tornou-se um leitor voraz. Quando tinha 11 anos, os avós foram morar no Estácio. "A diferença de Vila Isabel para o Estácio era a diferença entre o paraíso e o inferno", recorda. "Passei a ter bola furada, trabalhos de cartolina jogados na lama, raquetes de pingue-pongue quebradas, levava tapa na cara." E aí está outra parte da memória. Sem contar que a avó o levava aos centros de umbanda e aos terreiros de candomblé, onde ficava impressionado com os sons dos tambores - e tanto batucou em latas e panelas, em casa, que um tio lhe deu uma bateria. Mas vendo que a "relação" dele com os malandros do Estácio ficava cada vez pior, e perto de completar 18 anos, um dia os avós propuseram que fosse morar com um primo um pouco mais velho, na Tijuca. "Ele salvou a minha vida, não fez menos do que isso." O primo o levou para os bailes, as noitadas boêmias, as mulheres, o futebol, a quadra da escola de samba Acadêmicos do Salgueiro, os blocos de Carnaval. Veio depois a paixão pelos grupos de bossa nova. Em 1965, ano em que começou a fazer as primeiras letras de música, ingressou na Escola de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro. E voltamos ao início deste texto.
"Aldir não escreve, presta depoimento (sua obra são verdadeiros BOs na delegacia policial mais próxima), dá diagnóstico, antevê o futuro e enriquece o passado", escreveu Guinga para a contracapa do livro Resposta ao Tempo. O citado disco 50 Anos é aberto de viva voz por um depoimento de Dorival Caymmi: "Aldir Blanc é compositor carioca. É poeta da vida, do amor, da cidade. É aquele que sabe como ninguém retratar o fato e o sonho. Traduz a malícia, a graça e a malandragem. Se sabe de ginga, sabe de samba no pé. Estamos falando do Ourives do Palavreado. Estamos falando de poesia verdadeira. Todo mundo é carioca, mas Aldir Blanc é carioca mesmo".
Ourives do palavreado
Livro acompanha a trajetória de Aldir Blanc e esclarece os motivos que o afastaram do parceiro João Bosco
Jornalista carioca Luiz Fernando Vianna traça perfil de um dos maiores letristas brasileiros em 'Aldir Blanc - Resposta ao Tempo'
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